Martinho da Arcada era frequentado pelo poeta quase diariamente. Mesa onde escrevia é a maior atração do espaço, em Lisboa, que faz 240 anos. Há quem se emocione ao entrar.
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Percorrer o Martinho da Arcada, na Praça do Comércio em Lisboa, é atravessar mais de dois séculos de história em poucos minutos. Pelas mesas do café mais antigo do país passaram personalidades incontornáveis da nossa cultura e política, mas há uma que se destaca: a que faz parar curiosos e turistas de todo o Mundo e "até correr a lágrima", confidencia António de Sousa, dono do espaço. É a mesa de Fernando Pessoa. O café já esteve em risco de fechar, mas resiste pela vontade de quem não o quer deixar morrer.
É num recanto da sala do café, que completou 240 anos este mês, que se encontra a mesa discreta onde Fernando Pessoa escreveu algumas das suas obras mais emblemáticas, como a "Mensagem", e poemas hoje lidos e estudados em todo o Mundo. A passagem do poeta pelo mítico café está documentada nas paredes onde podemos ver fotografias suas, como uma em que está sentado com Idalino Costa Brochado, escritor e jornalista. Curiosidades que atraem visitas de estudo e turistas semanalmente.
Recriando as idas quase diárias do poeta ao Martinho, na parede atrás da mesa permanece um chapéu preto igual ao que usava e o poema "Liberdade" emoldurado, escrito naquele espaço em março de 1935, meses antes de morrer. Vê-se ainda uma carta do poeta Mário de Sá-Carneiro a Pessoa que nunca chegou a ser enviada e na qual Sá-Carneiro relatava as suas angústias ao amigo, pouco antes de se suicidar. Preservar estas memórias, adaptar-se às transformações e crises económicas da cidade e do país tem sido um verdadeiro desafio.
Suportar em pandemia
"É quase um milagre mantê-lo aberto", reconhece António de Sousa, que gere o icónico café há 32 anos. "Estes dois últimos anos de pandemia covid-19 foram assustadores e tivemos de suportar isso". Mas quando o espaço lhe foi parar às mãos foi pior. "Tinha parado no tempo, era tudo muito rudimentar, precisava de um investimento sério". A verba, de 30 mil contos, chegou de Cavaco Silva após ser pressionado pela Associação Amigos do Martinho da Arcada e sensibilizado para o risco de fecho do espaço. "As obras arrancaram logo e teve meio ano parado. Não foi fácil. Mas não o deixamos morrer", garante António de Sousa.
Dois séculos antes, em 1782, Julião Pereira de Castro, neveiro-mor do reino no tempo do Marquês de Pombal, abria o espaço como botequim de luxo. Conheceu vários nomes e só em 1829, quando passou para as mãos do neto do fundador, Martinho Bartholomeu Rodrigues, foi batizado de Martinho da Arcada.
Desses tempos, preserva as arcadas, um painel de azulejos do século XVIII e a emblemática mesa de Pessoa, onde o poeta tomou o último café com Almada Negreiros a 27 de novembro de 1935, três dias antes de morrer. "Sentiu-se mal aqui mesmo e foi para o hospital. Não voltou".
Personalidades da política ao desporto
Conhecido por acolher tertúlias, conspirações, encontros da maçonaria e até preparação de revoluções políticas e culturais, o Martinho da Arcada já recebeu centenas de personalidades. Os escritores Almada Negreiros, José Saramago, Jorge Amado ou Mia Couto, o escultor Júlio Pomar, o cineasta Manoel de Oliveira, a fadista Amália Rodrigues, a ex-atleta Rosa Mota, o cientista Stephen Hunkin, Xanana Gusmão ou o bispo Ximenes Belo foram apenas algumas delas. Há 30 anos que Luís Machado, escritor, dinamiza tertúlias no Martinho da Arcada.
Curiosidades
Jogo ilegal
Em 1810, o Martinho da Arcada foi alvo de denúncias por ali se praticar jogo ilegal. Os proprietários foram condenados ao pagamento de multa e obrigados a fechar o estabelecimento. Esteve encerrado cinco anos até conhecer um novo dono, José de Melo, que atraía clientes com gelados de morango e venda de almoços e jantares para fora.
Interesse público
Em 1999, o Martinho da Arcada foi eleito pelo Guia dos Cafés da Europa como Melhor Café do Ano e está classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1993. O Conselho da Europa está a preparar um roteiro de cafés históricos no qual o irá incluir.