O processo criminal dos resíduos tóxicos depositados nas antigas minas de S. Pedro da Cova, em Gondomar, é o mote de um espetáculo que envolve a comunidade. Melhor dizendo, são dois espetáculos em torno do antigo complexo, que vão a cena no Teatro Carlos Alberto, no Porto, a partir desta quinta-feira.
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Antigos mineiros, netos, professores, estudantes e até quem desempenhou funções políticas fazem parte de um elenco peculiar. As personagens são eles próprios, por terem vivido de perto os efeitos da contaminação de solos e águas provocada pela deposição de milhares de toneladas de resíduos perigosos nas escombreiras das minas.
É pela mão do encenador André Amálio que 25 pessoas protagonizam a peça "Tribunal Mina", que teve estreia na Culturgest, em Lisboa, em 2023, e agora é apresentada no Teatro Carlos Alberto, nesta quinta-feira, no sábado e no domingo. Na sexta e no domingo, parte desse elenco vai ao mesmo palco dar a conhecer "A Mina", a primeira produção da companhia Hotel Europa dedicada às gentes de S. Pedro da Cova, neste caso quem trabalhou na extração do carvão. Ao contrário do outro espetáculo, "A Mina" regressa à sala em que teve a primeira apresentação.
Em "Tribunal Mina", o público assiste a um processo que decorre no Tribunal Popular Mineiro, na tentativa de se encontrar os responsáveis pela deposição de quase 300 mil toneladas de resíduos perigosos, provenientes da Siderurgia Nacional (fábrica da Maia), material que só foi totalmente removido em 2022. Na justiça da vida real, o caso foi extinto por prescrição.
Uma "situação bastante chocante", disse o encenador ao JN, reforçando: "O maior crime ambiental em Portugal ficou sem culpados". Mas não no palco, já que, no Tribunal Popular Mineiro, "o culpado acaba por ser o Estado português", adianta André Amálio.
Estas são mais duas propostas de teatro documental apresentadas pela companhia Hotel Europa, de Lisboa. A partir de situações reais, contam-se histórias focadas nas pessoas em produções que misturam o teatro, a dança e a performance. "Estes trabalhos são sempre desafiantes", diz André Amálio. Se, por um lado, lida com a falta de tempo dos participantes - que não têm a mesma disponibilidade de um ator profissional -, por outro "facilita o facto de estarem a fazer deles próprios".
Florinda Sousa tem 80 anos e trabalhou nas minas. Foi para lá com 16 e só saiu quando o complexo encerrou, em 1970. Primeiro como britadeira e depois a carregar lamas, não passou lá tanto tempo quanto o marido, o pai e até os irmãos. "Todos faleceram do pó", contou-nos. Já com alguma experiência em teatro, que sempre a ajuda a manter-se ocupada, Florinda gostaria que houvesse mais apresentações: "Tenho pena que não possa continuar".
"Era um trabalho de escravo", lembra Serafim Ramos, de 73 anos, antigo mineiro. Sobre os resíduos, diz prontamente que "fizeram mal à freguesia, contaminaram aquilo tudo". Agora, ainda que seja a fingir, Serafim contribui para que o Tribunal Popular Mineiro julgue e condene os culpados.