Pessoas em situação de sem-abrigo tomam o pequeno-almoço, fazem atividades, têm formação e apoio psicológico em projeto na Póvoa de Varzim.
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Miguel não dorme embrulhado num cobertor na entrada de uma loja. Não tem aspeto sujo, cabelos compridos, barba por fazer, mas nem por isso é menos sem-abrigo. Há muito que (sobre)vivia sozinho, num quarto de uma casa que não é sua, sem perspetivas. No Centro Ocupacional de Inclusão (COI) da Póvoa de Varzim encontrou apoio, um grupo de amigos e a certeza de que "a mudança é possível". O espaço abriu em julho e faz parte do projeto Póvoa de Varzim Promove Inclusão.
"A ideia era chegar às pessoas sem-abrigo, ganhar a confiança delas, dar-lhes competências e melhorar as suas condições de vida", explicou, ao JN, a vereadora da Ação Social, Andrea Silva.
Desde 25 de julho que o COI abre todos os dias das 9 às 17 horas, no antigo edifício das Obras Municipais, adaptado a novas funções. Quando abre as portas, Sónia Santos tem quase sempre gente à espera. Chegam para o pequeno-almoço. Há chá, café, leite e pão com manteiga, fiambre ou queijo. Acabam por passar ali a manhã a pintar, a jogar às cartas, a fazer atividades ou a aprender. Depois do almoço, muitas vezes, voltam. Há palestras, sessões de cinema, conversas em grupo, apoio psicológico, acompanhamento a consultas.
Já mudaram rotinas
O projeto surgiu em 2022 e começou por traçar o retrato da situação. Hoje, tem sinalizadas 33 pessoas. A maioria são homens, dos 40 aos 60 anos, divorciados, de relações cortadas com a família, a viver em quartos ou garagens alugados, com consumos de droga ou álcool e grave carência económica.
"São muitos mais os sem teto nem casa própria do que os que vivem na rua. Mas todos estão numa situação de isolamento enorme. É um conceito de sem-abrigo mais alargado, diferente do tradicional, menos visível", explica a assistente social Marlene Cerqueira. "A maioria quase não saía do quarto. Agora já mudaram as rotinas, muitos vêm todos os dias, ajudam-se uns aos outros e até se encontram fora deste espaço", conta Sónia Santos.
Há quem tenha entrado ali a viver na rua e a consumir droga e, hoje, esteja já com medicação, de volta a casa da família e à procura de trabalho. Vitórias que enchem a equipa de orgulho.
"Isto é a fase de preparação para que possam, num futuro próximo, integrar o co-housing [habitação partilhada], definido na Estratégia Local de Habitação", sublinha Andrea Silva.
O espaço terá seis "mini T0", geridos pela Autarquia como uma espécie de centro de acolhimento temporário.
Eu respirava, mas não vivia
"Fiz 60 anos em novembro. Tive bolo e veio recheado de tudo o que eu precisava: carinho, apoio, compreensão", conta Miguel Matos, de lágrimas nos olhos. Já teve uma vida normal, mas o dinheiro foi-se, ficou sozinho, bateu no fundo. Seguiram-se três tentativas de suicídio, uma depressão profunda, anos a "vegetar". No Centro Ocupacional de Inclusão "ressuscitou" e ganhou "nova vida". "Se não fosse a ajuda delas, provavelmente agora não estava aqui. Eu respirava, mas não vivia. Agora, vivo e nem dou conta que respiro".
Miguel vive numa pensão, uma espécie de "casa comunitária". Está desempregado há dez anos. A comida vem de uma instituição local. Uma filha, duas netas, quase nenhum contacto. Se as carências económicas eram grandes, as psicológicas eram enormes. Chegou "um farrapo". Mal saía da cama. Volvidos pouco mais de seis meses, garante que "parece outro" e vê "uma luz ao fundo do túnel": "Jogamos xadrez e cartas, pintamos, já vimos cinema com pipocas e tudo, já fizemos formação (de cuidados de saúde primários e trajetórias de vida), temos apoio psicológico e afeto, o mais importante. Sinto que tenho uma retaguarda, sinto-me menos sozinho. Sentia-me excluído e aqui estou incluído". "Não falha um dia. Já criou rotinas", conta Sónia Santos. Miguel diz que ali faz-se "um trabalho invisível incrível", que o ajudou a ele "e a muitos outros". "Espero que percebam a importância deste espaço e que não deixem que feche", apela, já com receio que, chegados a junho e terminado o financiamento, o centro encerre. "Pode ser um quase nada para o Estado, mas para nós é muito", remata.
Pormenores
Ajuda financeira
O Póvoa de Varzim Promove Inclusão foi uma candidatura da Câmara ao Norte 2020. Orçado em 99 mil euros, recebeu um apoio de 84 mil euros dos fundos comunitários. O dinheiro paga três técnicas, carro de serviço para fazer, por exemplo, o acompanhamento de utentes a consultas, computadores e outro material.
Até junho
Por agora, o projeto está assegurado até junho, mas a vereadora da Ação Social crê que será para continuar. "Foi uma primeira experiência, mas esta área é importante. A pobreza, a inclusão social e a habitação terão de continuar a ser apoiadas", frisa.