Menos recursos para ajudar consumidores originam subida do número de overdoses desde 2017.
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A crise atual, provocada pela pandemia e inflação, e a pior qualidade das drogas estão a levar a um aumento do consumo de substâncias ilícitas em todo o país, com relevância para Lisboa. "Há mais recaídas. Tem muito a ver com a instabilidade social, precariedade e a questão da habitação que se vive", considera Américo Nave, diretor da associação Crescer. O número de overdoses não pára de aumentar desde 2017. Em 2021, morreram 74 consumidores, mais de metade (39) na Região Sul. O crescimento do policonsumo e a dificuldade de acorrer aos pedidos de ajuda podem estar na origem destas mortes.
A associação Crescer, que acompanha toxicodependentes há mais de uma década, diz que "o consumo de substâncias psicoativas está a aumentar e o tipo de utilização a mudar, com um aumento da cocaína e crack, mais por via fumada, e uma diminuição por via endovenosa". "Quando há maior repressão policial, as substâncias perdem qualidade, o que faz com que tenham de consumir mais para atingir o mesmo objetivo", diz Américo Nave.
João Goulão, diretor do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), admite "preocupação" com os dados mais recentes. "Desde 2017, há uma tendência de aumento do número de overdoses, sendo os valores dos últimos quatro anos os mais altos desde 2011". Para o médico, a "diminuição da capacidade de acorrer a todos os pedidos de ajuda nos últimos anos" e o policonsumo podem justificar estes números.
Américo Nave acredita que esta subida tem a ver com "o afastamento dos consumidores de estruturas de apoio por causa da grande desadequação das respostas, que se mantêm as mesmas de há mais de 20 anos, com programas muito virados para o consumo endovenoso quando a maioria consome por via fumada".
O diretor da Crescer lamenta "o grande desinvestimento nesta área, nomeadamente nas equipas de tratamento, a falta de acesso a apoio psicológico e de criação de respostas inovadoras".
Falta de respostas
A organização Médicos do Mundo, que gere uma sala de consumo assistido móvel em Lisboa, "não verificou um aumento do consumo de drogas, nem de mortes por overdose" nas suas zonas de intervenção, mas "um aumento do consumo de canábis, de álcool, e de pessoas aditivas aos jogos desde 2020".
Entre abril de 2019 e fevereiro de 2023, registou duas mortes por overdose, reverteu 14 e referenciou 203 pessoas para estruturas de saúde. Já a associação Ares do Pinhal, que gere a sala de consumo fixa de Lisboa, reverteu 36 overdoses e encaminhou 157 pessoas para tratamento desde que abriu, em 2021.
Maria Luísa Salazar, coordenadora do GAT IN Mouraria, diz que o centro comunitário de consumo assistido aberto em junho de 2022 reverteu 11 overdoses e que "na zona do consumo injetado assistido, cerca de 28 pessoas quiseram aceder a equipas de tratamento e estruturas residenciais". Alerta, contudo, para "a grande falta de respostas de tratamento e uma grande morosidade no seu acesso", podendo os utentes esperar mais de meio ano para iniciarem tratamento.
Com a pandemia, enterrei-me mais. Voltei e depois é difícil largar
João, nome fictício, 43 anos, mostra orgulhoso fotografias no telemóvel de quando era DJ. "Cheguei a ganhar 500 euros por noite. Grande vida que eu tinha", recorda enquanto prepara uma dose de crack (cocaína cozida) debaixo de um viaduto, na Avenida de Ceuta, em Lisboa. Já não consumia drogas há vários anos, mas com o encerramento das discotecas, durante a pandemia covid-19, ficou desempregado e teve uma recaída. "Com a pandemia, enterrei-me mais. Voltei a consumir e depois é difícil largar", confessa.
Não fica por ali muito tempo, assim como outros que por lá passam durante a tarde. Uns consomem e conversam, outros preferem o silêncio. "É um momento íntimo, é o espaço das pessoas. É mais difícil estabelecer relações com quem está há mais tempo na rua, há uma maior resistência e respeitamos", explica Solange Ascensão, da equipa de rua da zona ocidental da Crescer. Juntamente com Mariana Gomes, vai tentando perceber o que precisam e apresentar novos materiais que reduzem os danos dos consumos.
Mário, 48 anos, também nome fictício, olha atentamente para um filtro de algodão para consumo injetado e ouve a explicação da técnica. "Este filtro é mais denso e as substâncias adulterantes não passam em tão grande número, havendo menos probabilidade de se formarem abcessos ou coágulos após o consumo", esclarece Solange. Consumidor desde os 14 anos, esteve 12 sem o fazer, mas, há quatro, teve nova recaída. "Aproveitei uma chatice da vida para voltar. Ninguém nos obriga a fazer nada", confessa Mário, antes de injetar cocaína.
As técnicas da Crescer despedem-se e seguem para a Quinta do Loureiro. À chegada nota-se a cumplicidade criada em conversas longas como aquela que têm com Pedro, outro nome fictício. O consumidor, de 43 anos, já não sabe o que fazer para deixar a droga. Viveu noutro país, onde esteve alguns anos sem consumir, mas assim que regressou e viu a Ponte 25 de Abril através da janela do avião as pernas começaram a tremer.
Nunca estamos satisfeitos
"Em Portugal, não consigo largar a droga. A minha cabeça diz que não, mas as pernas já estão a ir para lá. Estou sempre a ver pessoas com quem consumia, não tenho amigos fora do contexto da droga, o que não ajuda", diz Pedro, que gostava de ter apoio psicológico.
Numa encosta de onde se vê a linha de comboio, Joana, 38 anos, admite que tem consumido mais. "A qualidade das substâncias diminuiu muito e temos de comprar mais para sentirmos a mesma sensação porque nunca estamos satisfeitos. Tem havido gente a passar mal por causa da má qualidade da droga".
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Benzodiazepinas
Só em 2021, as mortes por overdose dispararam 45%, atingindo o número mais alto desde 2009. Em mais de 80% dos casos foi detetada a presença de outras substâncias, além das drogas ilícitas, como benzodiazepinas.
Novos consumidores
Os consumidores de drogas, em Lisboa, são sobretudo homens, com mais de 40 anos. A Crescer tem assistido a novos consumos de pessoas mais jovens e do Sudoeste Asiático.