O Porto ainda dorme, mas o Bolhão já acordou. Mantém-se num trabalho silencioso, mas promete ter tudo pronto às 8 horas, quando abre os portões. Só que agora faz tudo às escondidas: pela cave logística, mesmo por baixo do mercado, entram legumes, peixe, pão e carne. Por um dia, o Bolhão esqueceu a timidez e mostrou ao "Jornal de Notícias" como se prepara para receber portugueses e estrangeiros.
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5.30 horas: a noite está fria e o mercado ainda dorme
Ecoa a voz de Alfredo Marceneiro nas paredes de betão. O fado rompe um silencioso acordar na cave do Bolhão e é banda sonora dos últimos trabalhos de limpeza. É quinta-feira, são 5.30 da manhã e o portão na Rua do Ateneu Comercial do Porto está aberto. Não tardarão a chegar Joaquim Araújo e Ilda Magalhães. Ele com 71 anos. Ela com 68. O casal é o primeiro a estacionar na cave. Na carrinha cinzenta trazem pencas e grelos, colhidos em Labruge, Vila do Conde, no campo ao lado da casa onde moram.
Ilda sobe rapidamente para o mercado e começa a abrir a banca. Joaquim fica. Pega nas caixas pretas carregadas de pencas e enche um carrinho de mão. "Já faço isto há 40 anos. A minha mulher está aqui há 30 e antes eu já vinha com a minha falecida sogra", recorda. "Nessa altura, parávamos lá fora, na Rua de Fernandes Tomás, e despejávamos. Era muito mais difícil", admite o vila-condense.
A noite está fria e o mercado ainda dorme. Há panos a cobrir a grande maioria das bancas, a proteger o que ficou por lá do dia anterior.
Ilda começa a contar: "Dez, onze, doze". Uma dúzia de molhos de grelos ficam já para a colega da banca em frente à sua. "Temos de ser uns para os outros", aconselha. Ao fundo, ouve-se o rolar do carrinho de mão. Chegam mais quatro caixas de legumes. A banca "Dona Ilda" começa a compor-se.
Joaquim prepara-se para regressar a Vila do Conde: "Vou colher os grelos outra vez e volto cá para fornecer no próximo dia".
6.40 horas: Sara Araújo já está acordada há mais de três horas
É filha da "peixeira Sara", icónica comerciante do Bolhão, e tem o nome da mãe. Sara Araújo, 33 anos, entra na cave às 6.40 horas numa carrinha branca carregada de peixe acabado de comprar na lota. "Trazemos sempre o máximo de variedade: fanecas, robalos, douradas, tamboril, enguias, linguados, carapaus, sardinha, pescada... É muita informação", ri, num olhar já perdido perante tanto peixe. Sara está acordada desde as três da manhã. Meia hora depois, já estava em Matosinhos.
Em pouco menos de cinco minutos, dezenas de caixas de esferovite repletas de gelo a abraçar peixes e peixinhos enchem, ainda na cave, um carrinho de alumínio. A equipa sobe ao mercado pelo elevador e dispõe tudo no chão, em frente à banca. Há quatro montras de exposição e atrás está a ser lavada uma câmara frigorífica só para a Peixaria Sara"s. Mas, mesmo assim, "às vezes é pouco para a quantidade de peixe". É certo que na cave logística também há áreas com equipamentos semelhantes, mas esses são partilhados por todos. Para Sara, "não faz sentido".
"De cada vez que alguém abre a arca, ela demora 15 ou 20 minutos a estabilizar a temperatura e pode influenciar a qualidade do produto", critica. Mesmo sem horário fixo, normalmente trabalha 12 horas por dia. "Mas não é sempre, senão também não se aguenta. Começo às três da manhã e trabalho agora um bocadinho com eles. Pomos a montra e depois vamos tomar café. Voltamos para cá antes das 8 horas, antes de abrir, e fico enquanto há mais movimento, até à uma ou duas da tarde", explica.
"Trabalhar aqui, com peixe, é muito difícil. Estás sempre em contacto com o gelo, quer seja verão ou inverno. Imagina que estão três graus, chegas aqui e vais meter as mãos no gelo para começar a ajeitar o peixe de manhã...", arregala os olhos.
A adaptação à cave já começou no La Vie [mercado temporário], que tinha uma estrutura semelhante para cargas e descargas, mas "o que chateia mesmo é o frio". "Estamos contentes por voltar à nossa casa, claro, é a nossa casa."
7.20 horas: aos 59 anos, Fátima já só pensa na reforma
Ainda é cedo, mas ao lado de Fátima Teixeira já há quem resmungue. Poderia tratar-se de um habitual "mau acordar", mas afinal a culpa é da chuva, que deixou o casaco de Lana molhado. Enquanto descasca e corta fruta em pedaços para fazer as saladas preferidas dos turistas, a funcionária critica não haver, no mercado, um cacifo para cada comerciante, onde pudessem ter "uma muda de roupa".
Os 166 cacifos existentes não são suficientes para todos, portanto o sistema é rotativo, explica Cátia Meirinhos, vice-presidente da GO Porto, empresa municipal responsável pela gestão do Mercado do Bolhão. Os comerciantes podem, contudo, reservar outros cacifos, por 2,25 euros/dia.
Entretanto, a boa disposição de Fátima já contagiou Lana, que se mantém dedicada às saladas de fruta.
Fiel à rotina, a carinhosa "Fatinha" enumera todos os passos: "É entrar pela cave, trazer algumas coisas, chegar cá em cima, começar a abrir o lugar e tirar os panos - porque estas cortinas não cobrem as bancas totalmente -, e repor a fruta".
"Claro que sobra sempre de um dia para o outro, mas temos de trazer mais", confessa. Se começa a pensar em como era o Bolhão antigamente, diz que "havia muito mais arrumação por baixo das bancas".
"Aqui, não. Estas bancas não levam nada. Uma tem um tubo de água, outro de luz, depois de Internet. É por isso que temos de trazer fruta diariamente. E esta exposição não é benéfica para mim nem para o cliente. Tenho de ser sincera e dizer o que sinto", lamenta. Diz que, ao ter quatro frentes de banca, tem de recordar ao cliente que fruta tem exposta do outro lado e que, se alguém quiser tirar alguma coisa e levar sem pagar, "é muito fácil".
"Gosto muito do que faço, mas este último meio ano tem sido muito cansativo e estou ansiosa que chegue a idade da reforma", ri.
8 horas: "Bem-vindos ao Mercado do Bolhão"
Varre-se o chão, organizam-se os caixotes vazios e verificam-se as caixas registadores. A Salsicharia Leandro acaba de abastecer a banca e, entre os comerciantes, está tudo pronto para receber, mais uma vez, portuenses e estrangeiros.
O turismo criou novos hábitos. Além das saladas de fruta de Fátima Teixeira, também a Peixaria Sara"s se adaptou. Em dois pratos, entre o gelo, estão dispostas mais de 20 ostras. Cada uma custa 1,5 euros. Mais à frente, está o camarão cozido. "Vamos dizer a verdade: não são só eles. Os portugueses também gostam", atira Sara. Entre os estrangeiros, a rotina é a de comer nas escadas, com um copo de vinho a acompanhar.
O tempo passa a correr. Ouve-se o sino tocar. Abrem-se as portas. São 8 horas. "Bem-vindos ao Mercado do Bolhão".
Detalhes
102 bancas
Entre frutarias, peixarias, talhos, artesanato, salsicharia, pão e bolos, há 102 bancas no Mercado do Bolhão. Além disso, há ainda 38 lojas, mas só 16 estão abertas. Dos dez restaurantes, dois já abriram e quatro estão em obras.
50 milhões de euros
A empreitada de remodelação e modernização do Bolhão, incluindo a construção da cave logística, ascendeu aos 50 milhões de euros. O espaço reabriu a 15 de setembro, depois de quatro anos em obras.
Cave abastece todo o mercado
O que representa esta nova cave para o Mercado do Bolhão?
A empreitada chamou-se restauro e modernização do Bolhão. Dizemos que esta cave logística é a modernização do mercado, com acesso por túnel na Rua do Ateneu Comercial do Porto e que permite fazer o abastecimento a todo o mercado. Tem 16 lugares.
Há um período mínimo que possam permanecer na cave?
Está aberta num horário bastante alargado. Começa logo a partir das 5 da manhã e podemos estender o horário, caso seja necessário. Só podem permanecer aqui 20 minutos, que é o tempo necessário para entrar e abastecer.
E quanto aos equipamentos? Há quem se queixe de os ter longe.
Há espaços, como as bancas de peixe, que têm um espaço de preparação na sua zona interior. Ainda assim, temos aqui mais de 80 arrumos. Existem mais no terreiro do mercado. Temos ainda câmaras frigoríficas comunitárias [na cave] que podem ser utilizadas por todos e podem ser arrendadas por 24 horas.
Trata-se de uma melhoria de qualidade de vida do mercado?
Sem dúvida. Temos a zona de tratamento de resíduos, que não existia, com áreas para todos os resíduos: diferenciados, orgânicos e M3, que podem provocar contaminação. Há cacifos e balneários para os comerciantes. v