Após a homenagem matinal aos seus mortos, passaram o resto do dia a resgatar cadáveres alheios. Incansáveis, e todavia extenuados, os Bombeiros Municipais do Funchal choraram, como homens a sério, por uns e por outros que morreram, anteontem, na Madeira.
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E por aqueles que, além dos 42 já recuperados sem remedeio, temem ser chamados a rebuscar nas entranhas da terra. Não serão poucos os que a tempestade engoliu, receiam os bombeiros. Esperando que a sorte os desminta.
Sorte que faltou a Francisco Bela nesse sábado infame. Bombeiro de 1.ª classe, "morreu à civil, mas cumprindo o dever. Salvava uma vizinha quando uma enxurrada o apanhou", conta Rogério Nóbrega. Acende um cigarro - para atribuir ao fumo a lágrima furtiva -, e acrescenta: "Ela escapou". Até o dia findar, um maço inteiro não chegará a Rogério, que se perfila, mais 31 camaradas madrugadores, na parada do quartel.
Não obstante, são poucos para a demanda que o comandante Nélson Bettencourt e o chefe de serviço, Juan Gomes, tentam dirimir, entre reuniões rápidas, telefonemas nervosos e ordens frenéticas no vórtice de urgências múltiplas. Sobeja-lhes a vontade, porém. Como a do subchefe Virgílio Berenguer. Com 24 anos de serviço, lidera a equipa de seis homens chamada a resgatar cinco cadáveres esmagados por uma grua que desabou sobre uma casa em Vareda do Paço do Morgado, no Laranjal. E, para prova tão dura, pois que "nunca tinha visto nada igual, nem sequer em 1993" - quando morreram sete nas enxurradas de então - releva as exéquias do pai, falecido na véspera.
Após subirem ruas íngremes, debruadas por destroços e gente que busca o vislumbre mórbido dos desafortunados, a equipa chega ao sinistro, assinalado por ajuntamento conforme à tragédia. No terraço da casa sobranceira a um ribeiro que a intempérie engrossou, e sob um viaduto monstro que a grua assassina estava a concluir, acena um velho.
Aurélio Bonifácio, Cláudio Baltazar e João de Luz pegam nas alfaias do ofício, galgam dois muros e, sob a chuva que recomeça, assomam ao sítio onde jazem cinco corpos hirtos. Avaliam modos de retirá-los do seio do sepulcro de ferro, enquanto Berenguer escuta o homem frágil que lhes acenou e tem ali, mortos, a mulher, um filho e uma neta de cinco anos.
"Disse-lhe para não vir, mas ela quis vir para a garagem do Areias [o dono da casa também morto, com o filho], que estava mais segura. De repente, ouço as pessoas a gritar e um barulho como um avião", conta o viúvo recente, Domingos Fernandes Santana. "Olho para trás, vejo a grua a cair e pensei: Ai, que eles morrem. E morreram", lamenta o homem, que hoje faz 62 anos. "Estive no Ultramar, vi muita coisa, mas como ela está, é que nunca", garante. Ela é Maria Teresa, que tinha 54 anos e deixa filhos.
Chega um deles enquanto os bombeiros alinham sudários no terraço e, no seio da comoção, rompe música festiva. A incongruência sobressalta. Será o órfão a detectar a origem do som: "Vem daqui, da minha mãe. É o telemóvel dela". Era. Mas também ele se calou, nas dobras da mortalha.
Dali a nada, parte o carro, à guarda de Felipe França, com as vítimas. A última a ser transportada foi a menina. Sob o braço, como um fardo - ignorar-lhe a forma torna a missão menos penosa. Mas não mais fácil: enquanto sorvem cigarros ávidos - para fumigar o cheiro pegajoso que a morte exala -, Cláudio sussurra ao telemóvel, olhos rasos. "Estive a falar com a minha filha, de quatro anos. Só queria ouvir a voz dela, mais nada. Senão", confessa, "não conseguia continuar".