Em Ovar, sentem-se abençoados pela "oportunidade de viver uma vida nova", depois de mais de um ano a sobreviver numa cidade tomada pelo autodenominado Estado Islâmico.
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Vieram do centro-norte da Síria, Raqqa, o reduto dos jiadistas que nos últimos dias tem sido alvo de bombardeamentos estratégicos pela aviação francesa, na sequência dos atentados terroristas em Paris de sexta-feira passada. A primeira família de refugiados sírios a chegar a Portugal instalou-se naquela cidade vareira há cinco dias e ali encontrou paz e "uma grande família".
Para trás, Ali Alkhamis, de 38 anos, e a mulher Nada Al Nadaf, de 28, deixaram irmãos e a mãe desta, com quem vão mantendo o contacto (nem sempre possível) por internet e por quem acumulam preocupações. Os conflitos na Síria levaram-lhes vários familiares. Nada não sabe do pai, desde que foi sequestrado. Apesar do regaste pago, nunca foi entregue, conta Ali ao JN. A esposa evita as câmaras e as conversas difíceis, prefere falar do quão "sociáveis" e "acolhedores" são os portugueses e das novas descobertas gastronómicas por aqui: o peixe e as variadas frutas e saladas.
Alfaiate e comerciante de profissão, Ali tinha já fechado a loja antes de abandonar a Síria com a mulher e as três pequenas filhas - Dima, Inas e Rimas, de nove, sete e quatro anos, respetivamente - devido aos bombardeamentos constantes em Raqqa, que não lhes pouparam a casa. Nesse momento, não viram outra solução senão fugirem a pé por montanhas, entre a escuridão da noite, até à Turquia, iniciando uma longa e rude viagem a caminho da Europa. "Não tínhamos outra escolha. Era tentar uma vida nova ou morrer", diz Ali. O "medo de morrer no mar, numa viagem perigosa" não os impediu de seguir ilegalmente pelo mar Egeu num pequeno bote até à Grécia, após um mês na Turquia. Pagaram mais mil e trezentos dólares por cabeça pela travessia - já tinham desembolsado para passar a fronteira da Síria, a 25 de agosto. O medo e a desconfiança acompanharam-nos sempre: "não conhecia ninguém, não confiava em ninguém", diz Ali.
Bateram a Grécia, a Macedónia, a Sérvia, a Croácia e a Hungria de comboio, de autocarro ou a pé, pela rota de refugiados, até Viena de Áustria. Foi aqui, na estação central, que o seu destino se cruzou com os lusos da caravana "Famílias como as Nossas", que ainda ontem voltaram a partir para a fronteira entre a Eslovénia e a Áustria para levar mais ajuda humanitária aos refugiados. Em Nuno Félix, que trouxe a família síria de carro para Portugal no início de outubro e os acolheu numa casa de familiares emprestada, em S. Martinho do Porto, Ali e Nada sentiram a confiança e o reacender da esperança. "As preocupações com as filhas, por um futuro em segurança" e as "dificuldades no caminho para a Alemanha", onde planeavam juntar-se a um irmão de Ali, foram decisivas. Não se arrependem.
Um convite dirigido pela União de Freguesias de Ovar trouxe-os agora para um T3, nesta terra do distrito de Aveiro. Havia já um protocolo para acolhimento de uma família síria assinado entre a Junta e a Plataforma de Apoio aos Refugiados, mas "o processo está muito demorado" e o autarca Bruno Oliveira e a sua equipa decidiram avançar. "Tínhamos já tudo a andar, casa alugada, emprego, apoios e eles estavam numa residência emprestada, sem perspetivas de trabalho", explica o presidente da Junta.
Em Ovar, encontraram uma casa cheia, mobilada, equipada e com uma dispensa carregada, numa zona residencial com tudo perto. Às crianças não falta nada - do baloiço e bicicleta no terraço, aos brinquedos, livros, lápis e marcadores que agradecem espontaneamente com uma alegria rasgada, beijinhos e abraços a todos que lhes entram em casa.
"Estamos numa cidade acolhedora, onde tenho muita gente com quem conversar", sublinha Ali, ávido por "socializar e conhecer pessoas". Por ali, uma nova vida começa a alinhavar-se para esta família. Já vão às compras e brincam no parque infantil e, no fim de semana, até visitaram ao Centro Cultural Islâmico do Porto.
As despesas da casa são assumidas pela União de Freguesias até a família se conseguir sustentar, pelo máximo de dois anos. O tecido empresarial juntou-se à causa em formato de mecenato, segundo Bruno Oliveira, e a comunidade também com eventos solidários e uma equipa multidisciplinar de voluntários, que ajudarão à integração da família (de professores e educadores infantis, a profissionais de saúde e animadores socioculturais).
Ontem, a família síria iniciou-se nas aulas de português, em casa, para que em dezembro Ali comece a trabalhar numa fábrica perto, onde também Nada já tem emprego assegurado. Ele arranha no inglês e já arrisca umas palavras em português, daí querer começar já. "O Ali está muito empenhado e coloca muitas dúvidas. A Nada quer muito aprender para poder conversar", conta a professora de português Anabela, que os introduz em guias de conversação, que adaptou do espanhol para português, com tradução em árabe.
Enquanto à mesa da sala os adultos aprendem intensivamente a língua, duas horas por dia, na mesa da cozinha, as meninas aprendem a ler e a escrever, enquanto não são inseridas na escola. Já dominam os números e o "atirei o pau ao gato" já é cantado de trás para a frente.
"Na Síria tínhamos uma família pequena, em Portugal temos uma família grande", diz Ali, agradecido pelo novo lar e todo o apoio recebido. O olhar cintilante de gratidão e o sorriso sincero não escondem, porém, uma alma ferida e preocupada com o que se passa no seu país e com os seus, mas também nas nações alvo dos ataques do ISIS. "Estamos muito tristes pelos atentados em Paris, não nos revemos neles. Todas as religiões querem paz e nós muçulmanos também. Acreditamos na paz e no amor", sublinha, apelando a um entendimento político internacional que devolva a bonança à Síria.