No bairro de lata onde vive uma das comunidades ciganas de Grijó, na Rua das Casas Queimadas, Gaia, as crianças brincam rente à estrada de alcatrão, onde os camiões passam velozes, alheios ao perigo.
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Quem ali vive não tem casa de banho, água canalizada e a luz vem de puxadas. Quando chove, tudo piora: as barracas, sem uma única entrada de luz direta, tornam-se mais sombrias. Há lonas e garrafões a suportar as infiltrações e o ambiente gela. A situação arrasta-se há cerca de 30 anos.
A Câmara de Gaia vai construir três edifícios para realojar as duas comunidades que ainda vivem em condições miseráveis, mas o autarca Eduardo Vítor Rodrigues nota que essa nem seria responsabilidade da Autarquia.
"O meu sonho é um dia ter uma casa. Nunca vivi em nenhuma. Há anos que nos prometem que vamos ser realojados, mas até agora nada", contou Maria Natália Soares, 48 anos, que ali já viu nascer 17 netos. "E 17 só de quatro filhos, ainda falta ter dos outros três", sublinhou.
Atento aos lamentos da mulher, Fernando Joaquim, 51 anos, recorda que tudo piorou quando, por causa das obras na A1, foram "obrigados a avançar no terreno, ficando com as barracas à face da estrada". "Ainda há uns anos um dos meus netos foi aqui atropelado. Isto é muito perigoso, com os carros a passarem a grande velocidade".
Sónia, 30 anos, mãe do menino de dez, não esquece o dia: "Pensei que estava morto! Ficou com um papo enorme na cabeça e chegou a estalar o crânio".
Mas, ainda assim, para a mãe de Zaqueu, 15 anos, de Isaque, 13, de Jonathan, 10, de Sarai, 6, de Estêvão, 5, das gémeas Luana e Anita, 5, e de Simão, de apenas um ano e meio, o "mais complicado é dar banho a tantas crianças em bacias, com a água a ter de ser aquecida no fogão". "E isto graças à generosidade do nosso vizinho da frente", assegura Sónia. Um empresário indiano, que ali montou negócio, e que ao JN - embora tenha preferido não se identificar - confessou que cede água por uma questão de "humanidade, sobretudo com tantas crianças".
Fernando Joaquim, que nasceu em Guetim, Espinho, "embora os avós já vivessem em Grijó", perdeu a conta à família: "Seremos uns 20 casais, 30 são crianças".
Não tem casa de banho
Sónia, que ali cresceu "na esperança de um dia ter uma casa", fala da "angústia que é ter uma dor de barriga a meio da noite". "Não temos outra alternativa se não sair de casa e correr até ao pinhal". Já durante o dia, a solução passa "pelas casas de banho dos supermercados".
Nas divisórias improvisadas com chapas e tábuas, Sónia mostra o esmero com que cuida das crianças. "Mas falta-lhes espaço", enquanto aponta para a cama de casal ladeada ao milímetro por duas camas de grades, onde dormem os mais novos. Noutro espaço exíguo "ficam as gémeas, a seguir os mais velhos".
Alguns metros à frente, na barraca da sogra, Maria Natália aponta para um garrafão de plástico com que dorme por cima da cabeça e para uma lata, colocada em cima da mesinha de cabeceira, para "amparar a água da chuva". "Tenho umas fotografias à frente, porque tenho vergonha", assumiu. E continua: "À conta disso, as madeiras começam a ficar podres e volta e meia temos de andar a substituí-las".
Novo local agrada
Ainda assim, Natália e o marido têm azulejos à entrada da casa "para ser mais higiénico". À porta, num carrinho de compras, há várias garrafas de lixívia.
O casal mora agora "apenas com a neta", Taísa, de quatro anos, que indiferente às condições limitadas em que vive espalha alegria em brincadeiras improvisadas com as primas, logo ali, na guia da estrada. As famílias contaram ao JN que a mudança para as casas novas "chegou a estar prevista para este ano" e "sempre que o terreno é limpo surge uma nova esperança de que é desta que a obra começa", confessou Maria Natália.
Ainda assim, Fernando Joaquim mostra-se "satisfeito" com o local onde vai ser construída a urbanização para onde se vão mudar, no terreno da antiga Fábrica de Madeiras da Feiteira, perto dali. "Estamos perto da zona em que sempre vivemos e frequentamos e, além disso, vamos ficar todos juntos, o que nos agrada bastante, porque assim não haverá queixas por causa do ruído fora de horas".
Pormenores
Duas comunidades
A Câmara de Gaia vai realojar as 46 famílias ciganas que vivem nas margens da A1, em Grijó, nomeadamente as que moram na Rua das Casas Queimadas e da Rua da Boavista. Segundo Eduardo Vítor Rodrigues, estas são "duas comunidades distintas".
Projeto
O projeto, orçado em 3,8 milhões de euros, inclui a construção de três blocos de habitação, sendo o bloco 1 composto por três edifícios interligados por uma galeria exterior, o bloco 2 por um único edifício e o bloco 3 por dois edifícios igualmente interligados.