Requalificação da ferrovia entre Gaia e Espinho eliminará todas as passagens de nível. Vigilantes vão desaparecer após anos de histórias.
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Quando se apresentou ao serviço, há 40 anos, Irene Leitão mal sabia para que servia "a corneta, a caixa de petardos e a bandeira" que lhe deram para as mãos. O pai, que sempre trabalhou na ferrovia, foi alimentando a paixão pelos comboios que, já na altura, nascia tímida entre as costuras de Irene. Foi esse "gosto" que a manteve até aos 63 anos junto à linha do comboio, numa profissão que a obriga a fazer mais de uma centena de quilómetros todos os dias.
A guarda de passagem de nível da Rua das Moutadas, em Gulpilhares, Gaia, faz parte da última geração de trabalhadoras do setor. Na Linha do Norte restam 37 mulheres e cinco homens, que se distribuem pelas dez passagens que ainda têm guarda. Após a requalificação do troço entre Gaia e Espinho, cujo arranque dos trabalhos está para breve, todos os atravessamentos serão eliminados e a profissão desaparecerá.
Irene não se afunda em tristeza. A guarda diz-se feliz por saber que, graças à reforma "que está aí à porta" vai regressar à sua "casinha", em Santa Comba Dão, Viseu, onde nasceu. No entanto, há quem tema o pior.
Inês Silva, de 59 anos, trabalha na passagem de nível da Rua da Praia da Nova, em Valadares, e acredita que, com a obra, aqueles locais transformar-se-ão num "matadouro". Por ali, passam mais de 20 comboios por hora, garante, alertando para o controlo do trânsito que se vê obrigada a fazer. Caso contrário, "os carros ficam no meio da linha".
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As duas filhas da guarda viveram a infância entre os abrigos de Paramos, em Espinho, onde Inês se estreou na profissão, com 22 anos. Em pequena, também aprendeu costura, mas dava tanto quanto o dinheiro da sardinha" e já naquela altura a ferrovia lhe despertava mais interesse. Inês passava horas a conversar com a mãe sobre o cruzamento entre a linha férrea e a estrada acima da casa onde viviam, não percebendo o porquê de, naquele lugar, estar sempre alguém "a dar ordens aos carros".
Perigo constante
"Mas eles não respeitam?", perguntava Inês, do alto da sua meninez, incrédula com os desacatos que por lá testemunhava.
Hoje, a situação mantém-se. Aliás, Irene e Inês dividem-se entre a obrigação de garantir que os comboios passam em segurança e a preocupação de que ninguém se magoe.
"Os carros passam até no momento em que a cancela está a baixar", afirma Irene, explicando que, se após o sinal sonoro demorar mais de 30 segundos a rodar o botão que fecha as barreiras, todos os comboios daquela área param. "E isso custa dinheiro", refere.
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Já Inês tem de abrir e fechar a cancela manualmente. Um dos episódios que mais a marcaram foi quando uma professora tentou matar-se. "A senhora estava com uma depressão. Quando dei por ela, já se tinha atirado para a linha. Ficou sem pés", conta, recordando o episódio com tristeza.
Trabalho exigente
Evitar uma tragédia é o mote de todos os dias destas mulheres. "É um trabalho de muita responsabilidade", sublinha Irene Leitão. Além disso, acrescenta, todas as guardas estão também em perigo. Uma das colegas de Irene já foi agredida naquele abrigo. "Foi há cinco ou seis anos. Entraram aqui dentro, bateram-lhe e foram embora. Ainda hoje não sabemos quem foi", conta.
Enquanto Irene conta os dias para a reforma, Inês pede que a profissão não acabe: "Não me imagino a fazer outra coisa".