A Fábrica Paupério nasceu em Valongo no Século XIX e, desde aí até aos nossos dias, tem sabido adaptar-se aos novos tempos, continuando fiel às receitas originais e ao processo artesanal de produzir as cerca de 40 variedades de biscoitos e bolachas que deliciam crianças e adultos.
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Para se descobrir a centenária Fábrica Paupério, a biscoitaria mais antiga do concelho de Valongo ainda a laborar, só é necessário usar um dos cinco sentidos: o olfato. Mesmo de olhos fechados, o agradável amora adocicado que sai pelas chaminés e perfuma as redondezas facilmente nos encaminha para o número 71 da Rua Sousa Paupério, bem no centro da cidade.
Mal se passa a soleira da porta e se entra na loja, a visão de prateleiras repletas de caixas e mais caixas, em lata e cartão, recheadas dos mais variados biscoitos e bolachas desperta outro dos nossos sentidos: o paladar. Só este permite absorver todos os diferentes sabores e texturas dos cerca de 40 tipos de doces e, assim, entender um pouco melhor como passados 144 anos os produtos desta empresa continuam a ser muito procurados e a fazer as delícias de miúdos e graúdos.
Todas estas iguarias ganham forma na fábrica, contigua à loja, onde os cerca de 30 funcionários desenvolvem um processo de produção todo ele ainda muito manual e artesanal. Se o amassar das massas e o bater dos cremes, ou o moldar dos biscoitos e bolachas e a cozedura contam com a ajuda de máquinas para facilitar o trabalho, já o embalamento ainda é muito tradicional e feito à mão, para garantir que os biscoitos cheguem nas melhores condições ao cliente.
O segredo da longevidade do negócio está em ter sabido preservar a essência dos produtos ao longo dos tempos. "Somos conhecidos por fabricarmos biscoitos e bolachas de excelente qualidade e o produto que hoje se produz é comparável com o que se produzia antigamente", salienta Eduardo Sousa, diretor financeiro e atual dono da Paupério, avançando: "Temos consumidores de diversas idades e as pessoas mais velhas dizem que os produtos têm o mesmo sabor que tinham há 50 anos. Isso dá-nos satisfação e ânimo para continuarmos a apostar numa seleção cuidada das matérias-primas, mantendo as receitas originais e os processos de fabrico basicamente iguais. Modernizámos equipamentos de moldagem e equipamentos para amassar e misturar as matérias-primas, mas na sua essência, a mão-de-obra, está em grande escala na produção dos nossos produtos".
Diversidade foi sempre a palavra de ordem para agradar a todos os palatos. "Temos imensos tipos de produtos, cerca de 40, e tivemos sempre muitas variedades ao longo deste século e meio quase de existência", explica o atual herdeiro, referindo que quando um produto não tem "rotação" é "descontinuado durante algum período de tempo", para passado uns anos voltar a entrar na linha de produção.
Somos conhecidos por fabricarmos biscoitos e bolachas de excelente qualidade e o produto que hoje se produz é comparável com o que se produzia antigamente"
Os fidalguinhos, que chegaram a ser apelidados de paupérios (por serem oriundos da fábrica e estarem ligados à família com o mesmo nome), e os biscoitos de milho são os mais antigos a serem produzidos. Sobre o último há até uma história curiosa a envolver o escritor Camilo Castelo Branco. "Há uns tempos um investigador que estava a focar-se nos hábitos alimentares do Camilo Castelo Branco confessou ter descoberto algures que ele se sentava num café na rua do Almada a degustar um cafezinho com um biscoito de milho da Paupério, enquanto redigia as notas do Amor de Perdição", conta Eduardo Sousa, que pertence à quinta geração da família de um dos fundadores e conhecedor de muitas histórias que envolvem a fábrica, tais como a da mudança do nome do bolo-rei aquando da implantação da República, em 1910.
"Os administradores da Paupério dessa altura com medo que os republicanos não gostassem do bolo pelo nome, mudaram-no para bolo-presidente. E andou uns anos a chamar-se assim, até descobrirem que republicanos e monárquicos o que queriam eram comer o bolo pela qualidade do produto e mudaram novamente o nome para bolo-rei", recorda.
A arte de saber gerir as sucessões de poder
Embora só tenha chegado à empresa em 1987, Eduardo Sousa conhece bem as origem do negócio e de como foi sendo trilhado o longo percurso de 144 anos. "A Paupério é uma empresa familiar, que remota ao século XIX, e se tem mantido no mercado graças a duas condições essenciais: à excelência da qualidade dos produtos e à teimosia dos gestores e administradores da empresa em preservar essa máxima qualidade, que é agradar aos consumidores e não preocupar-se com produções maciças, com custos de produção reduzidos para vender muito. Se tivessem seguido esse caminho já teriam desaparecido por completo", frisa o diretor, sem esquecer os sobressaltos: "Qualquer empresa tem os seus momentos de apogeu e os seus momentos de queda. A Paupério não foi exceção a nenhuma dessas situações. Teve momentos altos e baixos, mas soube sempre nos momentos difíceis contornar as dificuldades e iniciar um novo ciclo de ascensão".
O sucesso também se deve às gerações que se seguiram terem sabido gerir bem a transferência de poder de umas mãos para outras. "O envolvimento das novas gerações foi sempre um processo natural. Esta sociedade nasceu em 1874 da união entre dois amigos, o António Sousa Malta Paupério e o Joaquim Carlos Figueira. Em 1907, quando morreu o primeiro, os herdeiros não quiseram continuar na sociedade e o meu trisavô comprou-lhes a quota e a autorização para continuar a usar o nome Fábrica Paupério, que nessa altura já tinha 33 anos e tinha sido premiada em algumas exposições internacionais e, portanto, tinha fama. E os nossos antepassados e gestores encontraram sempre a pessoa indicada para continuar o negócio", afirma, orgulhoso, o atual dono, que juntamente com as duas irmãs soube dar o passo certo para manter a empresa no caminho certo.
Esta sociedade nasceu em 1874 da união entre dois amigos, o António Sousa Malta Paupério e o Joaquim Carlos Figueira"
"No meu caso, somos três herdeiros, eu e as minhas duas irmãs, e elas disseram que a pessoa indicada para continuar com o negócio era eu e puseram-se de fora e facilitaram a continuidade, pois não guerrearam, nem puxaram para um lado ou para outro", recorda o diretor financeiro, reconhecendo, contudo, que a "boa partilha acontece quando as empresas não estão muito bem posicionadas ou cotadas, pois é mais fácil negociar com os outros herdeiros". "Mas a linha de pensamento tem sido que é preferível ficar um só com o negócio, do que ficar no meio de três e depois ser partido. As empresas familiares normalmente não passam da terceira geração. O segredo tem sido o consenso entre os herdeiros em escolher entre eles o seguidor. Foi assim no passado e será assim no futuro", frisa o trineto de Joaquim Carlos Figueira, complementando: "As minhas filhas já são as herdeiras deste projeto. As minhas netas e o meu próximo neto irão certamente engendrar por continuar este negócio de família que já vai na sexta geração".
Mas deixa-lhes um aviso: "Têm de ser um bocadinho comedidas, não podem entusiasmar-se nos momentos de ascensão para não cometerem nenhuma loucura. Devem cingir-se à sua dimensão para continuarem no futuro".
"Mercado da saudade" é o alvo das exportações
Atualmente a empresa vive "um novo ciclo de ascensão que nasceu por altura do surgimento do chamado mercado Gourmet". "Embora reflita um valor mais elevado, deu-nos a oportunidade de mostrar novamente ao país, à Europa e ao Mundo inteiro que as empresas com produção de produtos de excelência e qualidade têm futuro", frisa Eduardo Sousa, avançando que a exportação é feita tanto de forma direta, pela própria empresa (embora represente uma fatia ainda muito diminuta), como de forma indireta, através de parceiros que exportam outros produtos, como vinhos e azeites, e também gostam de levar os biscoitos da Paupério.
"Nós e os nossos parceiros focamo-nos no mercado da saudade, de maior proximidade, na França, Suíça, Bélgica, Alemanha e também Inglaterra. Onde houver uma comunidade de portugueses temos a tentação de fazer chegar lá os nossos produtos. Mas, também vendemos para o outro lado do Mundo, como Estados Unidos, Macau e China. Estamos convencidos que no âmbito de um programa de internacionalização ao qual concorremos e que está em curso, vamos ter uma quota de exportação direta mais elevada nos próximos quatro anos", explica o proprietário.
A adaptação às exigência do mercado também contribuiu para a sobrevivência do negócio. "Durante a década de 80, com o surgimento das grandes superfícies, a concorrência era enorme, a dificuldade em manter as vendas era muito grande e houve necessidade de escolher um novo consumidor, um novo cliente, e começamos a fornecer as escolas. Criámos uma bolachinha, a Princesa Negra, que se destinada quase exclusivamente aos jovens estudantes e teve, e ainda tem, um sucesso estrondoso", ressalva o proprietário.
Nós e os nossos parceiros focamo-nos no mercado da saudade [...]. Onde houver uma comunidade de portugueses temos a tentação de fazer chegar lá os nossos produtos"
O nome Paupério não se fez apenas graças aos biscoitos e às bolachas. O fabrico sazonal do bolo-rei e do pão de ló, no Natal e na Páscoa, também são ex-líbris da centenária marca. "Antigamente fazíamos exclusivamente o bolo-rei no Natal e o pão de ló na Páscoa, porque o poder de compra do consumidor não era tão bom como agora. Neste momento fabricamos ambos nas duas épocas. Também são receitas muito antigas, que vêm do tempo da monarquia", frisa Eduardo Sousa, anotando que o bolo-rei "demora seis a sete horas a ser confecionado, desde a mistura dos ingredientes até chegar ao balcão para venda".
"De 1950/60 a 1980 tínhamos produção contínua do bolo rei desde 15 de dezembro e fabricávamos entre 25 a 30 toneladas. Atualmente, fazemos entre 2 a 3 toneladas, o que é sinal de que a concorrência nos foi conquistando mercado, essencialmente porque o consumidor de hoje gosta de ter o bolo-rei na mesa da consoada porque é tradição, mas não o come. Os nossos consumidores fiéis não o consumindo na noite da consoada, comem depois, porque ele continua apetecível e comestível vários dias, quanto mais não seja serve para torrar", justifica o dono da Paupério, completando: "Mantemo-nos fiéis às nossas tradições, receitas e ao nosso princípio: fabricar produtos de excelência para que o nosso consumidor se sinta satisfeito e agradado".