Várias unidades hoteleiras incorporam nos respetivos projetos vestígios do passado ou peças deixadas pelo inquilino anterior.
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São raros os exemplos, mas os que existem pautam pela diferença. Requalificações que não ficaram pela demolição total e pelo apagar da memória. Manter elementos arqueológicos, paredes revestidas a frescos ou utilizar materiais que pertenciam ao inquilino anterior para decorar o novo espaço é uma tendência cada vez mais comum e visível nos processos de renovação urbana que prosseguem no Porto. São sobretudo as novas unidades hoteleiras que surpreendem os clientes com estas "pequenas viagens ao passado".
Papelaria e hotel
Cadernos e antigas tabuadas
Ao fundo da Rua das Flores, o edifício sobressai pelo painel de azulejos azul e branco que cobre a fachada. Durante décadas, foi dos espaços comerciais de eleição de alunos de artes e arquitetura, que ali adquiriam os melhores materiais de papelaria. Foi fundada por Manuel Francisco de Araújo em 1829, que iniciou a sua atividade como um armazém de papel. Era uma espécie de bazar e para satisfazer os hábitos da comunidade inglesa a viver no Porto o comerciante deslocava-se com frequência a Londres, onde comprava sabonetes e perfumes. Ao balcão deixava o sobrinho e foi assim que a casa ganhou nome: Araújo & Sobrinho.
Os tempos, entretanto, mudaram. "A família Araújo começou a aperceber-se do declínio do negócio e tentou outra estratégia. Procuraram um promotor e assim nasceu o A.S.1928 Hotel", conta Raquel Queirós, diretora da unidade hoteleira. A papelaria manteve-se e divide agora o rés do chão do edifício com a receção do hotel. É uma das mais antigas do mundo e a mais antiga do Porto, pertencente à mesma família há cinco gerações. Na gestão está hoje Miguel Araújo.
Mas o resto do edifício é ocupado pelo projeto da Lux Hotels, que tem mais três unidades em Lisboa, outras tantas em Fátima e uma em Évora. "O conceito é ser um hotel museu", diz Raquel Queirós e, por isso, em quartos e corredores há fotografias antigas, máquinas de escrever, painéis publicitários, cadernos e antigas tabuadas. E mobiliário como os móveis de esteira que eram fabricados na carpintaria da própria papelaria.
Vestígios
Arcos em pedra e muros antigos
Na Ribeira, o Hotel Carris está neste momento encerrado e a sofrer pequenas obras de renovação. Em plena zona Património Mundial, na Rua do Infante D. Henrique, a unidade destaca-se pelo terraço com vistas sobre o Douro, mas é o interior que surpreende os visitantes pelos vestígios encontrados aquando da remodelação e ampliação do edifício para a criação do hotel.
Nada que, na altura, surpreendesse os responsáveis (a unidade pertence a uma empresa galega) até porque, a escassos metros dali, se encontra a Casa do Infante, um dos museus da cidade, localizado na antiga Alfândega Régia do séc. XIV, e onde foram igualmente encontrados achados que contam a história mercantil do Porto. No Carris foi mesmo realizado um estudo arqueológico para que a intervenção contemporânea respeitasse a história do local.
Preservaram-se arcos em pedra e outras antigas construções, como os calcetamentos e pedaços de muros de antigos. "O cliente quando entra fica surpreendido e gosta de usufruir de um espaço com caráter e identidade", salienta Noélia Castro, diretora da unidade hoteleira.
Fachada do teatro
Hotel com plateia de 130 lugares
Com a cidade transformada em estaleiro de obras de requalificação, antes de iniciados quaisquer trabalhos, é obrigatória a realização de sondagens, escavações e acompanhamentos arqueológicos. Quando no solo e subsolo nada é encontrado a solução pode ser o aproveitamento de outros elementos construtivos. Foi o que aconteceu no caso do Oporto Story Hotel, em construção na Rua de Gonçalo Cristóvão, e que vai incorporar a fachada do antigo teatro que durante anos serviu de casa à companhia "Modestos".
No granítico frontispício surge a data de 1856 e para recriar o ambiente os promotores estão a construir uma plateia com capacidade para acolher 130 pessoas e um "foyer", onde o público poderá conviver nos intervalos. Inserido numa moderna construção com 11 pisos (três dos quais abaixo do solo) o espaço terá um caráter multiusos.
Viagem nostálgica
Memorabilia levada ao extremo
O Pão de Açúcar Hotel é, no Porto, sinónimo de memorabilia e entrar no seu interior é viajar no tempo por peças e objetos preservados ao longo dos anos. A unidade começou por ser uma pensão na Baixa e só a partir da década de 1980 ganhou estatuto de hotel, quando a famílias Barrias, a mesma proprietária dos cafés Majestic e Guarany, comprou o edifício.
E o percurso nostálgico pelo século XX começa logo na receção, surgindo peças como um fonopostal, gravado nos Correios de Portugal, na década de 1940, ou a lata de Ovomaltine dos anos 1950. As paredes, pátios e escadas surpreendem. Um cartaz da União Soviética, de 1969, anuncia um concerto da Amália, as vitrinas ostentam revistas, de viagens, femininas, desportivas, bilhetes de avião e livros de culinária. Um museu vintage repleto de rádios, transístores e televisores de antigamente. Até dos carrinhos de choque da década de 70, oriundos da Feira do Palácio de Cristal.
"Hoje em dia, como as reservas já são feitas pela internet e estão lá as fotografias do hotel, o cliente já não é tão surpreendido. Quem vem para o Pão de Açúcar já sabe o que vai encontrar", explica Fernando Barrias. Objetos marcantes na requalificação do edificado mas que marcam também a cidade.