Governo lançou programa para acabar com condições de habitação "indignas", mas até agora não recebeu qualquer pedido dos senhorios interessados nos apoios para obras.
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Os olhos de Tânia são de um azul intenso, mas "os dias são de uma grande tristeza". Abraça os filhos dentro da casa que teve de deixar na passada sexta-feira após cair parte do teto. Tem 25 anos e, tal como o companheiro, está desempregada. Tânia é uma das milhares de pessoas muitas delas jovens que, em pleno século XXI e na segunda maior cidade do país, vive numa casa de ilha, insalubres e sem condições de habitabilidade. O Governo lançou o 1.º Direito - Programa de Apoio ao Acesso à Habitação para casos como o de Tânia mas, até agora não houve nenhum candidato proprietário de ilha. Dada a situação de emergência, Tânia foi realojada pela Câmara do Porto.
As ilhas sempre foram um problema habitacional da cidade e resultaram do aumento da população da cidade na segunda metade do século XIX, no início da industrialização. Há cerca de cem anos, a epidemia da gripe espanhola encontrou ali espaço fértil para proliferar. Construíram-se bairros sociais, implementaram-se programas especiais de realojamento, mas o problema persiste e está longe de ficar resolvido. A Câmara do Porto tratou das ilhas municipais. Uma grande parte foi demolida, outra reabilitada.
Aproveitadas para turismo
Com o boom turístico, muitos privados viram nas ilhas uma oportunidade de negócio, mas com a pandemia da covid-19 o entusiasmo esmoreceu e a miséria, a falta de higiene, a insegurança, continuam a fazer parte da vida de centenas de portuenses, sem capacidade económica para aceder ao preço de uma renda do ainda inflacionado mercado arrendatário.
O Governo, através do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU), firmou um acordo com a Câmara do Porto para acabar com condições de habitação "indignas" de 3800 portuenses. O número resultou de um levantamento da Estratégia Local de Habitação mas, contactado o Ministério das Infraestruturas e da habitação, até agora "ainda não foi efetuado qualquer pedido destes junto do IHRU, sendo certo que os proprietários privados dispõem de um prazo de 18 meses para apresentar esse pedido".
O ministério diz que vai "continuar a articular com o município a concretização da Estratégia Local de Habitação, nomeadamente no que respeita aos proprietários privados que se mostrem interessados nas soluções habitacionais preconizadas através deste instrumento".
Considerado urgente o realojamento, Tânia acabou numa casa camarária. Para trás, ficou a casa da ilha de Pereiró. Chove lá dentro e a água escorre pelas paredes. As tomadas rebentaram em curto-circuito. O frigorífico estava ligado a uma tomada na casa de banho. O casal e os três filhos, a Miriam, de sete anos, o Tomás, de quatro, e a Vitória, de dois anos, viveram em escassos 20 metros quadrados, com sala, cozinha, WC e quarto, até que parte do teto na sala caiu, expondo as telhas de amianto.
"Gosto de morar aqui, há espaço lá fora para brincar", conta Miriam. A avó, Celeste da Conceição Macedo, lembra os problemas de saúde das crianças. "O menino está sempre doente com problemas respiratórios e passa a vida no hospital". O ar bafiento e húmido é irrespirável em casa. "Não os posso ter na minha casa por falta de espaço", diz a avó, que vive no vizinho Bairro das Campinas.
A senhoria de Tânia está num lar e não quer saber da casa, não fez contrato de arrendamento e não recebe qualquer renda. Tal como Tânia, muitos outros residentes em ilhas não têm contacto com os proprietários e são eles que vão "fazendo umas obritas".
O modelo "Casa Reparada, Vida Melhorada" foi lançado, em 2014, pela Junta de Freguesia do Bonfim para reabilitar casas nas Ilhas. O sucesso levou à replicação noutras freguesias.
Em 1832, existiam no Porto 200 ilhas. O número aumentaria com a Revolução Industrial e, em 1939, eram 1152, onde viviam mais de 45 mil pessoas. Atualmente são dez mil residentes em 957 ilhas.