<p>As peças criadas pelo latoeiro Fernando Façanha dos Santos, no lugar de Cavadas, em Cantanhede, revelam o antigo quotidiano do povo português. E a "gente popular" é quem ainda as vai comprando.</p>
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Noutros tempos, Fernando, de 77 anos, despachou muitos canecos (usados pelas mulheres para irem buscar água à fonte), corredores (medidas utilizadas na compra controlada de arroz, massa ou açúcar necessários, sem margem para desperdício), candeeiros a petróleo (não havia electricidade) e latas (que as camponesas enchiam com duas ou três sardinhas para comer na pausa do trabalho).
Peças como estas, que têm na folha de Flandres a matéria-prima principal, pertencem a um mundo português antigo, em que o dinheiro escasseava e a poupança era a palavra de ordem. "São utensílios ligados ao mundo rural. As pessoas da cidade não ligam tanto", diz o latoeiro.
A confirmá-lo está a carteira de clientes - "pessoas do campo e aquelas que estão lá fora [do país]" -, embora, recentemente, tenha vendido para Coimbra dois acendedores de carvão, como lhes chama. Rumo aos Estados Unidos da América partiu, também, há pouco tempo, um jogo de medidas que vai ser usado por emigrantes no fabrico de bolos. O artesão contextualiza: "Antigamente, comprava-se o azeite e o petróleo ao quarto de litro".
A latoaria é quase uma tradição familiar. O avô chegou a empregar sete rapazes na oficina que abriu depois de aprender o ofício, em Coimbra, e os dois filhos seguiram-lhes as pisadas. Portanto, Fernando Façanha dos Santos teve avô, pai e tio a trabalhar na arte. Acredita é que esta vai morrer com ele. Não a transmitiu aos três descendentes por não a considerar profissão de futuro: "Isto não dá para a gente viver! Nem que venda duas ou três peças por semana. É mais para não deixar cair isto de um dia para o outro. Mas, mais ano, menos ano, acaba".
O tempo de procura abundante dos artigos em folha de Flandres passou. Sobraram as recordações. "Antes, levantava-me todos os dias às cinco da manhã para fazer obra desta e ter material com fartura para trazer 500, 700 ou 900 escudos das feiras. Ia mais cedo. Quando os outros chegavam, já eu tinha a feira quase feita! Era preciso muita manha!", conta, entre gargalhadas.
Fernando Façanha dos Santos exerceu o ofício desde a infância até 1974, quando as vendas caíram e passou a cultivar a terra para poder pôr comida na mesa. Mas, em 2001, o ex-presidente da Câmara de Cantanhede, Jorge Catarino, incentivou-o a voltar à latoaria para abrilhantar as feiras do concelho, após um reencontro inesperado. "Eu fazia as feiras de Cantanhede e de Febres encostado à mãe dele. Muito miúdo, ele ia visitá-la e punha-se de volta da minha banca a olhar", lembra o latoeiro. Mal adivinhava que a criança iria, em adulta, ser responsável pelo seu retomar da arte.
Foi um desafio, esse regresso. Fernando teve de refazer cada um dos moldes, que são às dezenas. ("Perdi horas de sono a fazê-los".) Tudo porque a mulher deitou fora os originais, quando ele decidiu desactivar a oficina, no ano da Revolução dos Cravos. Fala ao JN num telheiro de sua casa, onde não faltam o maçarico, o maço de madeira e a bordadeira, máquina responsável pelos enfeites nas peças. "Nunca pensei voltar", admite, com um sorriso no rosto e ar ainda vagamente surpreso.