Entrar numa mercearia é penetrar em memórias antigas que parecem descoladas da realidade atual, em que abunda a oferta de grandes superfícies comerciais. Mas ainda é possível encontrá-las no Grande Porto, sobrevivendo a custo e mantendo uma relação de proximidade singular com a clientela, sempre fiel e cada vez mais envelhecida.
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No entanto, os últimos tempos foram de mudança lenta. O aumento da inflação e do consequente aumento dos preços e o fim do IVA nos produtos de cesta básica trouxe um novo fôlego a estes estabelecimentos que fazem da proximidade questão de honra. Um pequeno sinal de esperança que não atenua as queixas e o lamento por um futuro incerto. Mas sempre de olhos postos no futuro e sem deixar cair o fundamental, a relação quase umbilical com os seus clientes, tratados com especial deferência e particular atenção. E mais acarinhados agora que se vivem tempos difíceis, com a inflação a causar cada vez mais dificuldades e a reduzir o poder de compra. Apesar da concorrência apertada de espaços com outra dimensão e capacidade de oferta, as mercearias continuam a resistir e a subsistir. Não com os mesmos números de outrora, quando os dias eram marcados por movimento em força, mas sempre olhando de frente o futuro. São pequenos focos do comércio de proximidade que vão ganhando força. Uma caminhada que se faz dia após dia, fazendo contas à sobrevivência e tendo sempre como foco central os clientes, cujos nomes quem está atrás do balcão os sabe de cor, como se fossem visita de casa.
Clientes contam mais o dinheiro"
porto - Com mais de cem anos de existência, a Casa Lourenço, na Rua do Bonjardim, no centro do Porto, continua afamada e com vida agitada. E, também, nas mãos da mesma família de sempre. Rosa Lourenço, 65 anos, é sobrinha do fundador e nota nas décadas a fio vividas atrás do balcão as transformações em relação ao passado. "Continuamos a ter muitos clientes portugueses, mas cada vez mais velhos", explica. Os turistas, esses, entram e espantam-se com as montras e prateleiras recheadas de carnes, queijos e demais produtos típicos portugueses, como os chouriços, os salpicões e os presuntos. "Diria que já ultrapassaram a nossa clientela nacional", aponta.
O IVA zero "não tem tido grande impacto." Rosa Lourenço entende mesmo que "os clientes nem ligam muito a isso", embora reconheça "um aumento de preços", isso mesmo confirmado por quem entra na Casa Lourenço e se queixa do impacto da inflação na vida em geral. "Os clientes desabafam muito connosco. A subida do custo de vida afetou-os imenso", reconhece.
"Nota-se quebra nas vendas, claro. As pessoas contam mais o dinheiro, fazem muitas contas, preferem o mais barato", diz Rosa Lourenço. "Veja-se o caso dos queijos, por exemplo. Agora, levam mais os de mistura, enquanto dantes eram capazes de escolher outros de qualidade superior", frisa.
Ainda temos livro de fiados"
matosinhos - A Mercearia Sr. Mário eterniza o nome daquele que foi o seu fundador, já lá vão mais de seis décadas. Carlos Pinto, 58 anos, o genro, não deixou cair esta loja histórica, situada na Rua Conde Alto Mearim, no coração de um Matosinhos diferente daquele de outros tempos, de quando o espaço se enchia de clientes sem dar descanso a quem lá trabalhava. Hoje, a realidade é diferente. "A clientela caiu bastante, especialmente desde há uma dúzia de anos", lamenta Carlos Pinto. "São as pessoas mais velhas e que moram por perto que continuam a vir cá, os chamados clientes da beira da porta", descreve.
"Compram menos e mais barato. Levam arroz, massas, conservas, frutas, mas por mais que queiram o que é bom não conseguem. O dinheiro não chega e adquirem o que está mais em conta", diz.
O IVA zero, considera Carlos Pinto, pouco ou nada veio ajudar comerciantes e consumidores. "Retiraram o IVA, mas o produtores vendem mais caro. Por isso, os efeitos não se notam. Mas já me apercebi de pessoas que preferem comprar aqui na mercearia porque nos supermercados e hipermercados é mais caro", conta.
Na Mercearia Sr. Mário permanece uma raridade que outrora era prática comum nos estabelecimentos do género: o livro do fiado. "É cada vez menos usado, mas continuamos a tê-lo sobretudo para atendermos às necessidades dos reformados", conta.
Preferem-nos às grandes superfícies"
vila nova de gaia - A Mercearia A Favorita foi inaugurada há mais de 100 anos e continua a fazer história em Mafamude, Vila Nova de Gaia. Resiste graças à resiliência dos proprietários, encravada numa zona urbana em desenvolvimento acelerado, a poucos metros de distância de um concorrente que não dá tréguas, o El Corte Inglés. Quem a dirige é Lurdes Rodrigues, 60 anos, viúva há dois de Bernardino, o homem que durante mais de quatro décadas foi rosto e alma da loja, que comprou aos antigos patrões. "Antigamente, os dias passavam-se com a casa sempre cheia, especialmente às sextas-feiras e aos sábados. Agora, por vezes passam-se horas sem que entre alguém", revela Lurdes Rodrigues, sentada frente à caixa registadora, essa testemunha dos dias difíceis. "As pessoas compram cada vez menos, não levam para casa tudo o que dantes levavam. Vão ao mais barato, contam os tostões todos", diz.
Desde a entrada em vigor do IVA zero, porém, que o panorama tem vindo lentamente a alterar-se. "Os clientes queixam-se de que o IVA baixou mas que os produtos estão ainda mais caros. No entanto, dizem que preferem comprar aqui do que numa grande superfície porque lá os preços cresceram ainda mais", considera Lurdes Rodrigues. Fruta e legumes continuam a ser os bens preferidos de quem consome na Mercearia A Favorita, onde abundam dizeres populares eternizados em pequenos quadros espalhados por toda a loja. Uma forma de dar vida original a um estabelecimento que recusa fechar portas.
Relação de proximidade é insubstituível
Joel Azevedo, presidente da Associação dos Comerciantes do Porto
O IVA zero trouxe benefícios ao pequeno comércio de retalho?
É verdade que muitos desses estabelecimentos tiveram vantagens com a aplicação da medida. Sentiram um efeito imediato nos preços, ao contrário das grandes superfícies. Foi muito importante para a economia das pequenas lojas. A dúvida é perceber se se trata de um efeito residual ou se vai continuar a sentir-se a longo prazo. Isso só o futuro o dirá.
Os clientes estão a voltar em força às mercearias tradicionais?
Há uma preocupação dos clientes de encontrar novas formas de concretizar as suas compras. As mercearias, em muitos casos, oferecem condições diferenciadas de pagamento, ao final do mês ou ao final da semana, e isso é uma vantagem. As pessoas sentem-se mais seguras.
É um novo alento para os estabelecimentos de proximidade?
Os preços não são necessariamente mais baixos nas mercearias, mas há outras características de confiança que estes oferecem e que não podem ser encontradas noutros locais. A relação de proximidade e de comunidade é insubstituível. Há uma ligação especial com quem está do outro lado.
Como classificaria o futuro do setor?
Existem muitas variáveis, acompanhadas de picos de momentos e circunstâncias. Depois da pandemia, que trouxe algum retorno ao comércio de proximidade mas também algum afastamento devido às compras online, a subida da inflação fez regressar uma certa margem de confiança que nunca se havia perdido mas que agora ganhou novos contornos.