Os 43 ocupantes do centro de migrantes do Fundão têm todos trabalho. O recomeço de uma vida de terror.
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"Se soubesse o que iria viver até chegar ao Fundão, voltaria a fazer o mesmo porque o que nos levou a fugir é bem pior do que o drama da viagem". A resposta é igual e pronta por parte dos refugiados, salvos por embarcações humanitárias e que encontraram uma nova vida no Fundão. O maior centro para as migrações do país, instalado no antigo Seminário do Fundão, tem 43 cidadãos que fugiram da guerra. Todos estão empregados, em áreas diversas como pastelaria, construção civil ou confeções. E já falam "alguma coisa" em português.
"Houvesse mais refugiados e existiria emprego para todos eles", garante a coordenadora do centro e psicóloga, Paula Pio. O Fundão atravessa uma fase positiva de emprego com o município a divulgar nas redes sociais as vagas transmitidas pelas empresas.
O primeiro grupo de refugiados chegou ao Centro para as Migrações em julho de 2018. Dezanove migrantes resgatados pelo navio humanitário Aquarius. "Nove foram embora porque tinham familiares na Europa", explica Paula Pio.
Major Tesfay, de 26 anos, é um dos que ficou no centro a que todos chamam "casa". Trabalha numa empresa de eletricidade com serviços fora do Fundão, pelo que já conheceu outras zonas, como o Algarve. Permanece no Centro porque ainda precisa de apoio psicológico e acompanhamento. "O Fundão é a minha casa, onde tenho uma nova família. Estou bem, mas estaria melhor se conseguisse trazer da Eritreia a minha mãe e os meus dois irmãos", confessa ao JN.
Mãe de peluches
A falta da família é a maior necessidade apontada pelos refugiados, embora todos falem com os familiares por telefone ou videochamada. "A maioria é muito jovem, na casa dos 20 a 25 anos. Temos migrantes rapazes que compram peluches para enfeitar as camas, mostrando dessa forma que a ausência afetiva da mãe está muito presente", revela Paula Pio.
Em Portugal, os acolhidos ganharam peso, saúde e o sorriso, mas o trauma das condições de fuga para a Europa mantém-se. "Damos tempo, e eles começam a contar-nos de uma forma natural o que sofreram na fuga. Mas é algo que não se esquece. Quando chegaram, nem dormir conseguiam. Deambulavam pelo seminário", lembra a responsável.
"O Fundão, por ser uma cidade pequena, permitiu que eles sentissem afeto. Vão à rua e são cumprimentados. Os que partiram mantêm uma ligação. É o caso do presidente de uma câmara na Eritreia, do grupo "Aquarius", que foi para a Bélgica. Dizem que nos querem visitar porque não esquecem o Fundão", frisa Paula Pio.
Há refugiados que trabalham no Centro para as Migrações. Marie Grace, uma costamarfinense de 21 anos, ou de Hebtetsion Tesjawhiet, de 48 anos, da Eritreia, o mais velho dos 43 ali acolhidos, fazem parte deste grupo. A primeira trabalha na cozinha, o segundo, que por ter balas alojadas nas pernas não pode ficar muito tempo em pé, trata do espaço arborizado exterior e ajuda no que é necessário. "É trabalho que alguém tem de fazer, por isso a Câmara proporcionou este recrutamento", diz a responsável pelo centro, que acredita ser uma questão de tempo "até todos serem realojados em habitações sociais ou em casas arrendadas", como já o fizeram alguns, sozinhos ou acompanhados no Fundão.
A cidade do Fundão, onde chegaram sem roupa, com fome, assustados, feridos, é o ponto de partida de uma nova vida. "Lugar do presente e futuro, com emprego e paz", resume Major Teisfay, que se despede do JN com uma mão no peito e uma expressão beirã. "Bem-haja".