O impacto da demolição dos edifícios foi tal que há quem pense que o Bairro de S. João de Deus, no Porto, já não existe. "Mas não foi demolido?", perguntam, muitas vezes, a Patrícia Costa, de 40 anos, que reside numa das moradias unifamiliares do bairro, outrora o supermercado da droga do Porto.
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Já não existe o "Vale dos Leprosos", onde os toxicodependentes iam consumir, ressacar e, com frequência, morrer de overdose. Mas o bairro - as moradias - ainda lá está.
O S. João de Deus está mais calmo. Às vezes, calmo de mais. "À noite parece um bairro-fantasma", diz a moradora Teresa Pinto, de 68 anos. Também Álvaro Dias do Santos, de 65 anos, reconhece a acalmia do lugar: "Havia dias em que queria ir trabalhar e nem podia. Era só polícia por todo o lado". Mas as mágoas não desaparecem. "Um filho meu morreu de overdose no "Vale dos Leprosos"".
O último dos 28 prédios, associados ao tráfico e ao consumo de droga, foi demolido há dez anos. O processo começou em 2002, no primeiro mandato de Rui Rio à frente da Câmara do Porto, e terminou a 16 de dezembro de 2008. Uma década depois, as feridas ainda não estão todas saradas.
A droga ditou o fim dos prédios, que começaram a ser construídos na década de 50. Antes, na década de 40, já existiam 144 moradias unifamiliares, explica a Câmara do Porto.
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Impossível não demolir
"Dada a contaminação do bairro pela droga, era impossível não demolir. Aquele ambiente social já não tinha recuperação", explica Paulo Morais, vereador da Habitação entre 2002 e 2005.
As rusgas policiais no "Tarrafal", assim era conhecido o bairro, dado o seu mau ambiente, faziam parte do dia a dia. "Algumas pessoas já tinham pedido a transferência do bairro, antes da demolição porque não se sentiam bem", afirma Ernesto Santos, presidente da Junta de Freguesia de Campanhã, e antigo morador do S. João de Deus.
As opiniões quanto às demolições estão longe de ser consensuais.
Em 1990, começaram a ser construídos novos prédios para auxiliar as centenas de famílias, maioritariamente de etnia cigana, que residiam em barracas no bairro. "Viviam perto de 1200 pessoas em condições miseráveis", refere o padre José Maia, responsável pelo projeto "Luta contra a Pobreza", um acordo entre a Autarquia e o Estado, que deu casa àquela comunidade.
Os novos prédios surgiram e a construção terminou em 2000. Dois anos depois, também esses blocos foram demolidos. "Um local abandonado dá silvas e mato. Uma comunidade abandonada dá delinquência", comenta o pároco da Areosa.
Centenas de famílias
As demolições dos edifícios levadas a cabo pela Câmara do Porto tiveram impacto na vida de cerca de 430 agregados familiares. Os realojamentos foram feitos noutros bairros sociais do Porto. E foram efetuados 132 despejos. "Havia uma perseguição sistemática às habitações onde tinha sido apreendida droga. Isso era implacável", recorda Paulo Morais.
Do bairro apenas resistem as moradias unifamiliares, que começaram a ser reabilitadas ou construídas de raiz no mandato de Rui Moreira: 12 agregados estão em habitações novas e 33 aguardam em contentores provisórios pela sua vez.
"Quando saí do bairro, desenraizei-me completamente", diz Ernesto Santos. "Vou lá muitas vezes, mas não quero regressar", confessa, emocionado.
Ao JN, em resposta por email, o gabinete de comunicação de Rui Rio escreve que foi cumprido o objetivo da demolição: "Dar dignidade às pessoas que lá viviam e acabar com aquele gueto da cidade". Caso se repetisse o cenário do S. João de Deus, o antigo autarca "faria tudo igual".
Tarrafal
O bairro ficou conhecido como Tarrafal, nome do antigo campo de concentração de Cabo Verde durante a ditadura em Portugal, porque albergava famílias problemáticas e estava muito conotado com o tráfico de droga e a violência.
Despejos
Segundo a Câmara, fizeram-se 132 despejos. A quem fosse apreendida droga em casa não era atribuída habitação após a demolição.
Habitação
O projeto de "Luta contra a Pobreza" começou em 1990 para alojar as pessoas que residiam em barracas. O acordo entre o Governo de Cavaco Silva e a Autarquia presidida por Fernando Gomes custou dez milhões.
Realojamento
Campanhã foi a freguesia que recebeu mais moradores do S. João de Deus, com 45% de realojamentos, seguida de Paranhos e Ramalde.
Requalificação
O processo das moradias unifamiliares do bairro deverá estar concluído no início de 2020. O plano prevê a reabilitação de 84 fogos e a construção de 12.