Psicologia para maximizar resiliência dos profissionais de saúde no Hospital São João. E também o efeito de um bom palavrão libertador...
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No tumulto da emergência sanitária, a dose terapêutica de um "ó cara...!" ecoa como uma válvula de escape do stress acumulado numa das enfermarias restritas à covid-19. A par das melhores práticas científicas, será também a isto que se refere Eduardo Carqueja, diretor do Serviço de Psicologia do Hospital de S. João, quando fala de "ventilar as almas".
Por estes dias, na terapia de grupo da ala B da enfermaria 6, que apanhou em cheio com a covid-19, uma dezena de enfermeiras prepara-se para o turno da tarde. Antes de entrarem ao serviço nos cuidados intensivos de doentes, partilham elas próprias experiências e emoções de um quotidiano de grande desgaste físico e psicológico, de muitas dúvidas e de ainda mais angústias. "Por vezes, dou por mim a soltar um palavrão. Faz tão bem...", conta uma das enfermeiras, entre a risada geral. No Porto, o repertório pode ser vasto.
O próprio professor Carqueja regista tudo daquele confessionário, que é uma fuga ao quotidiano de stress. "É uma sessão de partilhas". Ali, em meia hora de catarse, contam-se todas as opressões pessoais, desde logo, o medo ao vírus e de contágio da própria família. E também se ensinam truques para antecipar, planear e lidar eficazmente com o trauma, o do testemunho diário da morte, o da exposição ao perigo e o do melindroso contacto com o desespero dos familiares dos doentes.
"Situações muito marcantes"
"É um dia a dia de stress. Lida-se com situações muito marcantes. E por isso é tão importante ter estes serviços de apoio psicológico", conta ao JN o enfermeiro-chefe da ala B da enfermaria 6, João Oliveira, que lidera uma equipa de 58 profissionais e de "muita bravura".
Criado em novembro de 2019, ainda antes da chegada da pandemia, o Serviço de Psicologia do Centro Hospitalar Universitário de S. João foi instalado, inicialmente, em contentores. Em maio, finalmente, ocupou instalações próprias dentro do hospital, onde trabalham três dezenas de psicólogos, que não têm mãos a medir, tantas são as solicitações, como as da esposa e da filha de um doente em coma desde 8 de janeiro.
Fernando, de 49 anos, respira através de pulmões artificiais há mais de um mês. As visitas regulares terminam sempre com a passagem pelo gabinete de um psicólogo: "Quando fui abordada por este serviço, só pensei que queriam preparar-me para o pior desenlace. Agora, é um alívio. Sei que o meu marido não podia estar em melhores mãos", diz a mulher, de 48 anos. "Estas consultas ajudam-nos a lidar com a dor causada pela doença e pela ausência do meu pai", conta a filha, de 18 anos.
"A pandemia deu-nos mais visibilidade. Só espero que este investimento não seja transitório. Os psicólogos vão ser cada vez mais necessários. Vai levar muito tempo para se recuperar das sequelas da covid. E somos muito poucos para as necessidades do Serviço Nacional de Saúde. É quase ridículo que haja 250 psicólogos para todos os centros de saúde do país", afirma Eduardo Carqueja.
Detalhes
14 450 consultas externas
Só na chamada primeira vaga da pandemia, o Serviço de Psicologia do São João atendeu mais de 600 doentes infetados com o novo coronavírus.
Reforço na Urgência
O Serviço de Psicologia do CHUSJ recebeu o reforço de uma psicóloga, destacada para lidar diretamente com a Urgência e para apoiar profissionais de saúde, doentes e familiares nos momentos de stress ou situações emocionalmente traumáticas. A diretora da Urgência, Cristina Marujo, considera este apoio "muito importante".
SNS 24 - Apoio por telefone
O Ministério da Saúde e a Ordem dos Psicólogos Portugueses, com apoio da Fundação Gulbenkian, organizaram um serviço de aconselhamento psicológico por telefone, o chamado SNS 24, através do 808 24 24 24, que pretende apoiar utentes e profissionais de saúde da linha da frente de combate à pandemia.
Plataforma
Desafios cognitivos e sopa de letras
Na convalescença que pode ser longa e entediante, seja da covid-19 e ou de qualquer outra doença, matar o tempo de forma útil é um desafio para os doentes internados. Daí o Serviço de Psicologia do CHUSJ ter criado uma base de testes cognitivos, para estímulo dos internados. É uma plataforma de exercícios mentais, criada para doentes e familiares, ao qual todos podem aceder, no site do hospital. Ali foram alojados centenas de exercícios, para treinar atenção, perceção, cálculo, escrita, planeamento, provérbios, adivinhas. Também não faltam palavras cruzadas ou sopa de letras. Cláudia Sousa, coordenadora da Unidade de Neuropsicologia, agradece a colaboração de antigos alunos para a recolha dos exercícios: "Lançámos-lhes o repto e corresponderam de forma magnífica. E todos os dias chegam novos exercícios. Sem eles não teria sido possível".