Comerciante da Póvoa de Varzim trabalhou ali toda a vida e não tem outra fonte de rendimento. Pároco afirma que edifício é da Igreja e que precisa de alargar o cartório.
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"Sou sozinha, tenho 63 anos, pago 250 euros de renda de casa. Vou viver de quê?", atira Maria da Conceição Santos, sem conseguir conter as lágrimas. Foi o pai quem, "com muito sacrifício", abriu a Sapataria Gastão, em 1968, no coração do Bairro da Matriz, mesmo em frente à igreja, na Póvoa de Varzim. Há dez anos morreu o pai. Em 2017, a mãe. Agora, a paróquia despejou-a e a emblemática Gastão vai ter mesmo de fechar. O padre diz que o contrato terminou e, "por caridade", até deixa Conceição ficar mais um ano.
"Nunca mudamos nada, sempre pagamos a renda a horas. A sapataria é propriedade de Alberto Pereira dos Santos - Herdeiros", explica Conceição, apontando o aviso colado na porta, ainda incrédula com o despejo.
"Sou solteira. Não tenho filhos. O meu irmão [também herdeiro] não quer isto. Só pedi para me deixarem ficar até eu ter idade para a reforma. Não aceitaram", conta, indignada com "a falta de humanidade" de quem, do outro lado da rua, "prega a solidariedade e o amor ao próximo".
O padre António Torres morreu a 27 de julho de 2019. Desde então, é Avelino Castro quem preside à Fábrica da Igreja Paroquial de Nossa Senhora da Conceição e assume as funções de prior. "Está aqui ao lado no cartório paroquial todos os dias. Nunca veio aqui ter comigo, saber, dizer alguma coisa", lamenta a mulher, que, católica e devota, até deixou de ir à igreja matriz com a revolta.
Ação judicial
Na ação interposta em tribunal, a Fábrica da Igreja alegava que Conceição não pagava a renda e que nunca trabalhou com o pai. A mulher arrolou testemunhas, levou os extratos bancários. Garante que nem a deixaram falar e "as testemunhas foram todas dispensadas". Na ata final diz-se que o contrato de arrendamento, assinado a 14 de julho de 1967, "caducou com a morte de Maria de Lurdes Alves Vieira [a mãe], a 19-06-2017" e que Conceição tem vindo a ocupar, "sem título", o imóvel, pelo qual paga uma renda mensal de 126,64 euros.
Agora, tem até 31 de dezembro de 2023 para sair. Caso não cumpra o prazo previsto, terá de pagar 1500 euros de multa por cada mês de atraso. "Outra sapataria não abro. Não há forças", atira, desanimada.
O padre Avelino Castro fez questão de publicar a ata da audição final no Facebook, em resposta à publicação de um morador, revoltado com a atitude da paróquia. Ao JN, diz que o processo "já vem de trás, do tempo do padre Torres". Garante que "o contrato acabou", que "o edifício é da paróquia por direito" e que, como sinal de boa-fé, a Fábrica da Igreja até "cedeu" e deixará Conceição ficar mais um ano, a fim de organizar a vida.
O pároco explica ainda que o cartório, na porta ao lado, numa paróquia com mais de 20 mil habitantes, "precisa urgentemente de espaço": "Não tenho sítio para arquivo. Estou a atender pessoas com gente à espera sem sítio para aguardar". Afirma que o espaço agora ocupado pela "Gastão" servirá "para aumentar a área destinada ao cartório" e que nada mais tem a dizer sobre o caso.