Faz esta quarta-feira duas dezenas de anos que a última locomotiva trilhou a via estreita até à localidade do Muro. População sente-se abandonada.
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Há exatos 20 anos, este era um dia de despedida, mas de esperança: pela última vez, o comboio de via estreita corria sobre os carris para ligar Porto, Maia e Trofa em poucos minutos. A população dizia-lhe adeus e preparava-se para dar as boas-vindas ao metro, prometido para substituir as velhas locomotivas. Mas o novo transporte perdeu-se pelo caminho e deixou para trás vidas descarriladas. Até hoje.
O compromisso não deixava dúvidas: os novos carris chegariam à Trofa na fase inicial de expansão do metro, que teve a primeira linha inaugurada em dezembro de 2002, entre a Trindade - de onde partiam os comboios para a Trofa -, e Matosinhos. Os anos passaram e as linhas multiplicaram-se até Gaia, Gondomar, Póvoa e Maia, onde, a custo, o metro chegou ao ISMAI. Aí, parou, deixando pela frente um fosso rasgado até à cidade da Trofa, uma ferida aberta no território e nas populações que se fixaram na zona sul do concelho graças à ferrovia e que foram ficando, embaladas pelas promessas dos governos.
Dolores e o marido, Mário, fizeram fé na palavra dos governantes, e nela foram embrulhando os anos, fintando a custo a "quebra de 70% no negócio" do café que, às portas da estação do Muro, na fronteira com a Maia, vivia do movimento de utentes do comboio. "Ficou tudo arruinado para nós. Esperámos pelas promessas dos políticos. Se não fosse isso, não aguardava 20 anos e tinha saído daqui. Agora, é tarde", arrepende-se Dolores Ribeiro, com quase sete décadas de vida e o café parado no tempo, encravado no "deserto" Largo da Estação.
negócio caiu por terra
Dali, atravessando o mato em que se transformou a antiga ferrovia, chega-se ao pão-quente Real, que José Moura abriu em 1996. "Tínhamos muito mais movimento quando havia comboio, e uma das razões para termos investido aqui foi a perspetiva de um dia termos o metro. Agora estamos prejudicados, porque fizemos o investimento e a perspetiva de negócio caiu por terra", lamenta o empresário, que se sente "defraudado" e "enganado". Confessa que, se soubesse que o metro não chegaria ao Muro, "provavelmente procurava outra zona, onde não tivesse perdas".
À penalização no negócio, soma-se a dificuldade que o filho, estudante da Faculdade de Engenharia do Porto, tem nas deslocações para as aulas, acrescentaria José Moura, lembrando que é um problema de tantos outros alunos da envolvente.
É o caso da vizinha Isabel Freitas, que na semana passada se mudou para Guimarães, onde frequenta o primeiro ano de Engenharia e Gestão Industrial, por ter chegado ao fim do primeiro semestre "exausta" com a correria diária para conciliar todos os transportes, incluindo os alternativos, no Muro, que passam "de duas em duas horas". "Não podia continuar com aquela rotina. Vinha sempre muito cansada, e não conseguia estudar", conta Isabel, que perdia três horas por dia nas viagens. "Faltam meios alternativos suficientes, e faz falta uma empresa de transportes do município. Era muito mais eficiente", advoga a aluna.
Cobras e ratazanas
Da janela de casa, no primeiro andar, Teresa Vilaça tem janela panorâmica sobre a desolação: o velho canal transformado em matagal a perder de vista, a estação fantasma entaipada e arruinada. "É esta entulheira que se vê", lastimam as irmãs Conceição e Lurdes Brito, também com as traseiras das casas a confrontar com a antiga linha.
"Entram ratos e tenho de pôr ratoeiras", relata Conceição, que se vê na contingência de "andar a limpar e a queimar [mato], por causa da bicharada". "É cada ratazana...", estremece Lurdes. "E cobras?", lembraria a irmã, que vive na casa ao lado. "Isto é o trajeto de dezenas de pessoas, e chega a ter erva com 60 centímetros de altura", descreve Manuel Pinto, a apontar o atravessamento em terra a cruzar a antiga linha que sobrou depois de arrancados os carris.
Desvalorização
Valor de imóveis caiu para quase metade
Na zona Sul do concelho da Trofa, a mais penalizada pela supressão da ferrovia - a cidade é servida pela Linha do Minho -, os imóveis desvalorizaram à medida que se foi apagando a luz ao fundo do túnel e a chegada do metro começou a tornar-se irreal. "Ao prometerem o metro e não ter chegado, os terrenos, casas e apartamentos perderam muito o valor. Em 40%, o que é muito", avalia Eduardo Carneiro, dono da ECM Imobiliária, sediada no Muro, onde os clientes não querem investir "mesmo sendo muito mais barato do que no Castêlo da Maia". "Se houvesse metro, iria haver muito mais construção, porque há muitos terrenos para urbanizar. Mas ninguém corre esse risco devido ao metro e à EN14", aponta o profissional, sublinhando que "o Muro é das freguesias mais prejudicadas".
Número
Metrobus
Em 2009, antes das eleições legislativas, o Governo anunciou o concurso público para a linha até à Trofa, por 140 milhões, que seria anulado no ano seguinte. A solução agora reside no aproveitamento do canal para o metrobus.
Carta aberta
O movimento "Metro para a Trofa, já" e algumas forças políticas concelhias elaboraram uma carta aberta que vai ser divulgada hoje, para "assinalar os 20 anos à espera do metro".
Extensão da Linha Verde
Ficaram por construir 10,5 quilómetros de ferrovia, a suposta Linha Verde do metro, que ficou por criar entre a Maia e a Trofa.