Ocupantes do betão armado de um dos pontões rodoviários mais concorridos do Porto resistiram mas aceitaram a oportunidade de reintegração social. Deixaram para trás anos e anos de precariedade e miséria, de toxicodependência e de patologias mentais. Abandonaram também toneladas de lixo e prodigiosas técnicas de sobrevivência, como a das ligações avulsas à rede elétrica. Levaram com eles cães, gatos, galinhas e mais afetos para o centro de acolhimento.
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Seis cidadãos caracterizados em situação de sem-abrigo foram alojados esta semana no Centro de Acolhimento Temporário Joaquim Urbano, no Porto. Seria só mais um caso de reintegração se não se tivesse também resolvido a chaga social reportada nos viadutos do Campo Alegre havia muitos anos.
Às portas da Faculdade de Arquitetura do Porto, ali naqueles vãos de betão armado, ficou o quotidiano de errância e de todas as privações. Muita miséria e tanta droga. Tudo associado a patologias de saúde mental, como as de acumulação compulsiva de lixo. Os serviços municipais de limpeza urbana recolheram mais de vinte toneladas de detritos.
Ligações elétricas ilegais
Os seis sem-abrigo, todos homens, entre os 35 e os 60 anos, entre os quais dois irmãos, vegetaram nos viadutos do Campo Alegre durante mais de uma década. Todos reconhecidos sem domicílio fixo, mas também identificados como ocupantes das barracas que, pouco a pouco, foram instalando sob o viaduto e que o génio clandestino de uma mão providencial tratou de dotar com a habitabilidade possível. Quatro ligações elétricas ilegais foram desmanteladas pela E-REDES. E como as usadas para abrir as luminárias, outras chaves executadas com mestria também serviram para abrir bocas de incêndio que forneciam água para lavagem de louça e para higiene pessoal.
"Além das queixas sobre a limpeza urbana foram identificadas situações com evidência de patologias de saúde mental, designadamente relacionadas com acumuladores. O fenómeno não se verifica apenas nas casas e também foi constatado entre estes sem-abrigo. Acumularam lixo, metais, madeiras. Tinham toneladas de lenha, faziam fogueiras e um deles até tinha uma salamandra, com perigo manifesto de incêndio e risco de ficarem lá carbonizados. Do primeiro viaduto foram retiradas 8,8 toneladas de detritos. E do segundo foram recolhidas 13 toneladas. Pior ainda era a absoluta falta de condições de salubridade e de dignidade em que viviam estas pessoas" disse ao JN o comandante da Polícia Municipal do Porto (PMP), António Leitão da Silva.
Sucata, cães, gatos e galinhas
Entre os avisos e a conclusão, a operação coordenada pela PMP levou duas semanas, mas havia mais tempo que o Departamento de Coesão e Ação Social da Câmara Municipal do Porto negociava o realojamento com os sem-abrigo, para se vencer a resistência inicial.
Para se concluir a reintegração de forma mais livre e espontânea, o acordo entre os sem-abrigo e os assistentes sociais da Câmara foi atingido com cedências: os seis homens puderam fazer o levantamento dos bens pessoais julgados transferíveis para o centro de acolhimento e a um deles até foi permito negociar o "stock" de metais que tinha acumulado e já em vista de negócio com um sucateiro. "Não nos pareceu justo que esse material fosse incluído entre os detritos recolhidos", observou Leitão da Silva.
Para o centro de acolhimento seguiram, também, animais domésticos e de companhia dos sem-abrigo. Relação: dois gatos, quatro cães, um pato e 14 galinhas poedeiras, que asseguravam as fontes proteicas dos ocupantes do viaduto do Campo Alegre.
420 alojados, 140 nas ruas da cidade
No centro de acolhimento, os seis sem-abrigo terão alojamento condigno, refeições a horas certas e acompanhamento de saúde. O espaço no antigo Hospital Joaquim Urbano é destinado a pessoas caracterizadas em situação de sem-abrigo e funciona ininterruptamente durante todo o ano, 24 horas por dia.
No mais recente inquérito, relativo a 2020, o programa da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem Abrigo identificou no Porto 560 cidadãos em diferentes tipologias de sem-abrigo e em diversos quadros, tais como as 420 pessoas sem casa mas instaladas em alojamentos municipais ou os 140 cidadãos sem teto, sem domicílio fixo, condenados à sua sorte e a um destino de todas as privações.
O grupo destes sem-abrigo (sobrevivem em jardins, viadutos, estações de transportes públicos e outros locais precários, como automóveis abandonados, vãos de escadas ou casas devolutas) inclui homens e mulheres - na maioria homens, entre os 45 e os 64 anos - em total errância, muitos deles desinteressados pelos planos de reintegração social. Outros, seis dezenas deles, foram identificados, selecionados, alojados e integrados no projeto municipal de apoio à reinserção socioprofissional.
Dar a cana e ensinar a pescar
Financiado pela Câmara (200 mil euros), o projeto "Porto Sentido - Habitação, Capacitação, Reinserção" tem um valor global de 700 mil euros e é também comparticipado pelo Fundo Fundo Social Europeu. Foi iniciado ainda em 2020 e surgiu "de modo a incentivar autonomia [dos sem-abrigo] no processo de transição plena para a vida ativa".
O projeto conta com a parceria de várias entidades e instituições, como a SAOM - Serviços de Assistência Organizações de Maria, e tem como mote "Dar a cana e ensinar a pescar". Disponibiliza alojamento em residências disponibilizadas pela Câmara e pela Santa Casa da Misericórdia do Porto e em apartamentos especificamente arrendados para este programa de reinserção social.
Em cursos de ano e meio, que serão ministrados até finais deste ano, os beneficiários frequentam ações de formação e capacitação. São selecionados de acordo com o grau de motivação e de predisposição para uma mudança de vida, considerando que o objetivo do programa é conseguir que abandonem definitivamente a condição de sem-abrigo ou sem-teto e que adquiram ferramentas que permitam a autonomia profissional e financeira.
150 mil refeições quentes
A par da Estratégia Municipal para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo 2020-2023, a rede de restaurantes solidários criada pela Câmara do Porto serve cerca de 600 refeições por dia (em take-away, por causa da pandemia). Ainda em 2020, foram servidas 150 mil refeições quentes, nos três restaurantes solidários da cidade do Porto em funcionamento.
Abertos todos os dias do ano (20.00-22.30 horas), estes espaços servem cerca de 600 refeições por dia. O primeiro restaurante solidário da Câmara do Porto foi instalado em 2017, próximo à Praça da Batalha (na Rua de Cimo de Vila) e é o que tem mais procura (em 2020, serviu, aproximadamente, 280 refeições por dia). Em 2019, a rede alargou-se até ao antigo Hospital Joaquim Urbano, onde funciona o Centro de Acolhimento Temporário (130 refeições quentes por dia). O restaurante solidário da Baixa, aberto em finais de 2020, na Travessa de Passos Manuel, assegura 170 refeições diárias.
O financiamento da Câmara para 2021 fixou-se nos 360 mil euros, investimento superior ao de 2020, na ordem dos 300 mil euros.