Os sindicatos exigem remuneração de trabalho suplementar para os Sapadores. O Município do Porto diz que o Batalhão está abrangido pelo regime de disponibilidade permanente e alega que não tem base legal para pagar.
Corpo do artigo
Conflito aberto nos Sapadores Bombeiros do Porto, em torno de uma questão primordial: "jornada contínua" ou "disponibilidade permanente"? Não faltam guiões jurídicos à medida de quem, entre os trabalhadores, os operacionais, e a patroa, a Câmara Municipal do Porto, puxa de legislação para argumentar como melhor lhe convém. Trabalho de sapa para sindicalistas e juristas e braço-de-ferro para durar, na discussão de turnos, na reivindicação de trabalho extraordinário remunerado, folgas, férias ou subsídios.
Assim vai, nos últimos tempos, o debate entrincheirado no batalhão da Rua da Constituição: de um lado, sindicalistas, que reclamam horas extraordinárias e subsídios de alimentação e ainda denunciam alegados atropelos do Comando no retorno de folgas e na marcação de férias; do outro, o município, que nega e diz não poder remunerar o reclamado trabalho suplementar, porque nem sequer o reconhece na lei.
Legislação para o setor nem falta: os sapadores reclamam-se profissionais em regime de jornada contínua e a Câmara situa-os como regimento de disponibilidade permanente. Faz toda a diferença, na hora de negociar. "Não é nada de mais. São coisas simples. Também não é por causa de 20 ou 30 euros para a frente ou para trás. Não estamos a exigir aumentos de 300 ou de 400 euros. São coisas óbvias", queixa-se um sapador do quartel da Constituição.
Posições extremadas
O que também é óbvio, na ótica da Câmara do Porto, é que "não pode ser considerado trabalho suplementar aquele que já está programado, num ciclo de turnos rotativos, para fazer face à organização normal das atividades". Segundo a mesma fonte municipal, "a questão já foi expressamente objeto de um acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, em abril de 2018, num processo que opôs o Sindicato Nacional dos Bombeiros Profissionais (SNBP) a outro município [Viseu] e que concluiu que qualquer ultrapassagem do limite normal de horas dos trabalhadores da função pública (as 35 horas) por parte dos bombeiros municipais deve ser enquadrada na figura da disponibilidade permanente e não na figura das horas extraordinárias".
Nascido em 2019, após o do aludido acórdão, o Sindicato Nacional dos Bombeiros Sapadores não aceita a sentença do Supremo Tribunal Administrativo nem a fixação de jurisprudência. "A lei geral é clara: todo o trabalho além das 35 horas tem de ser pago como trabalho extraordinário. Ponto final. E sobre esse ACEP [ndr: acordo coletivo de empregador público] já explicámos à Câmara que é ilegal. Os ACEP são feitos para garantir direitos que a lei não preveja. Não para retirar direitos que a lei já prevê. A Câmara, infelizmente, não entende assim", declara ao JN o dirigente nacional do SNBS, Ricardo Cunha.
Dissidência e jurisprudência
Neste ponto, observa-se a cisão sindical. Os representantes do SNBS criticam os parceiros do SNBP por terem "aceitado pacificamente" o acórdão sobre o batalhão de Viseu. Responde, Sérgio Carvalho, presidente do SNBP: "Nós também não estamos de acordo com esse acórdão. Simplesmente não podemos ir contra as decisões dos tribunais. Os tribunais dizem, tendo em conta o horário de trabalho dos bombeiros, que a disponibilidade permanente rege a atividade dos bombeiros. Nós não estamos de acordo com isso. Mas há situações relativamente a esse entendimento dos tribunais que criaram jurisprudência e que só podem ser alteradas por alteração da própria legislação. É isso que estamos a tentar junto do Governo e da Assembleia de República, para revisão do Estatuto dos Bombeiros, de todos os bombeiros. Agora estamos a rever o ACEP, para ser ajustado em todo o país, não só no Porto. O nosso sindicato não defende a jornada contínua, porque, com a aplicação deste regime, não há direito a subsídio de turno. Há direito, sim, é ao pagamento de horas noturnas, entre a meia-noite a sete da manhã".
"O que estamos a pedir - atalha Ricardo Cunha, do SNBS - até é um bocado ridículo, porque a própria lei já o prevê. Não estamos a pedir nada que não seja legal. A Câmara do Porto é que está um bocadinho baralhada, porque houve um parecer de um tribunal relativamente ao pagamento de trabalho extraordinário num caso de disponibilidade permanente, em Viseu, e que não tem nada a ver com este caso do Batalhão de Sapadores Bombeiros do Porto, reconhecidamente no regime de jornada contínua".
Batalha jurídica
Bem antes deste confronto penal, a contestação começou no quotidiano do quartel da Constituição. Os desentendimentos radicam, segundo os sindicalistas, nas horas extraordinárias, resultante das operacionalizações dos turnos.
O SNBP reclama retribuições pela designada "36.ª hora", que o Comando recusa pagar e que, agora, pretenderá compensar com a atribuição de folgas. O sindicato diz que não aceita esta solução e verifica que o "banco de horas" é ilegal, por ter sido adoptado "sem o consentimento de um mínimo de 60% dos operacionais, como manda a lei".
Os bombeiros pedem o pagamento de uma hora extraordinária por semana, resultante da acumulação de três turnos de 12 horas, que perfazem 36 horas, mais uma do que as 35 horas legais. Além disto, acusam a Câmara de querer pagar apenas três frações do subsídio de alimentação por semana, correspondentes aos três turnos semanais, o que consideram discriminatório e injusto em relação a outros funcionários municipais do "expediente normal", que recebem cinco frações do subsídio de alimentação por 35 horas de trabalho semanal.
A Câmara defende-se: "A concessão de descanso compensatório remunerado está indissociavelmente ligada ao pagamento de horas extraordinárias, pelo que, por todas as razões expostas, não é devida. É dever do município do Porto cumprir esta orientação, não existindo no quadro legal norma especial que o habilite a proceder de forma diferente, sob pena de violar a lei e ser por isso responsabilizado. É também nesse sentido que dispõe o acordo coletivo de trabalho de 2015".
Quanto ao subsídio de refeição, a Câmara alega que "existe uma clara omissão de regulamentação por parte do Estado, sem a qual não pode, sob pena de ilegalidade, abonar este subsídio de forma diferente do que tem vindo a ser feita". A patroa dos sapadores conclui que "não existe no quadro legal norma que reconheça as especificidades inerentes à prestação de trabalho dos bombeiros profissionais e, em consequência, habilite o município ao pagamento de dois subsídios de refeição por referência a um só turno".
"Três horas de juros"
Dos cerca de 350 profissionais que trabalham no Batalhão de Sapadores Bombeiros do Porto, duas centenas de sapadores - a maioria de militância reclamada pelo recém-criado Sindicato Nacional dos Bombeiros Sapadores (SNBS) - contestam o Comando, se não abertamente, pelo menos em surdina.
E se as relações já andavam azedadas, por causa da chamada "36.ª hora", a hora a mais que os bombeiros reclamam e que Câmara diz não poder pagar, tudo piorou na dia 1 deste mês, quando as chefias decidiriam acabar com o turno de 24 horas (seguido de 96 horas de descanso), adoptado para organizar o maior número possível de espelhos e para diminuir o risco de contágio entre os operacionais durante o pico do período de contingência sanitária.
Os sindicalistas acusam o Comando de ter organizado, de forma unilateral e ilegal, uma escala de retorno de horas de serviço, porque, na sequência do turno de 24 horas/96 de descanso, foi verificado que os bombeiros, ao cabo de um mês, trabalhavam sete horas abaixo das exigidas pelo regime das 35 semanais.
As chefias do Batalhão interromperam a escala e cobraram as tais sete horas por cada mês, de dezembro a fevereiro, num total de 21 horas. Acresce, sempre segundo os sindicalistas, que o Comando impôs um turno de 24 horas como forma de pagamento, ou seja, "com três horas de juros".
O SNBS exige que estas três horas sejam também remuneradas como trabalho suplementar. E, mais uma vez, a Câmara contesta e verifica não ter "base legal" para atender às reivindicações dos operacionais: "Os turnos de 24 horas foram implementados com caráter excecional e de forma provisória, mantendo-se o cumprimento legal do período normal de trabalho semanal de 35 horas, tendo em conta a situação pandémica à data e a necessidade de tomar todas as medidas possíveis para proteger os profissionais e as suas famílias, bem assim como para garantir a continuidade do funcionamento do serviço de prestação de socorro à cidade. Foi uma escalação requerida pelos próprios bombeiros. A medida foi reavaliada pelo Gabinete de Crise do Batalhão. Foi efetuada uma avaliação técnica da situação atual e aconselhado o regresso ao horário habitual".
"Ou seja: o país ainda não desconfinou, ninguém desconfinou e até já se fala numa quarta vaga da pandemia, mas o Comando decidiu desconfinar. Só podemos concluir que o valor da vida diminuiu drasticamente, para se poder cumprir os horários", concluiu um sapador ao JN.