Pedidos de ajuda de famílias disparam no Porto. Donativos diminuíram de tal forma que associações admitem que respostas podem começar a falhar.
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Há pais e mães a deixar de comer para dar aos filhos. Só esquecem a vergonha quando as refeições para os mais pequenos falham. É nessa altura que pedem ajuda, sempre por telefone e com alguém a chorar do outro lado. No Grande Porto, há centenas de famílias com crianças que não conseguem suportar o aumento dos preços e só conseguem alimentar-se com a ajuda de associações. A situação é transversal a todo o país: pagas as contas da água, luz, gás e renda ou prestação da casa, pouco ou nada sobra para as refeições.
É através de associações de solidariedade que as famílias garantem algum mantimento mas, se os donativos não aumentarem, as próprias instituições admitem que as respostas podem falhar num futuro próximo. A situação é de tal forma preocupante, que Francisco Duarte, voluntário e coordenador na associação Porta Solidária, do Centro Social da Paróquia Senhora da Conceição, no Porto, receia que um dia a comida não chegue para toda a gente.
No Banco Alimentar do Porto, o cenário é "mais agreste do que era na pandemia", observa a presidente da instituição, Bárbara Barros. Há 50 pedidos de apoio por semana, num total de 255 novos pedidos até final de outubro. A maioria é de famílias com crianças.
No Mercado dos Santos, o quadro também está "muito pior". Aquela associação apoia cerca de 90 famílias de todos os concelhos do Grande Porto, através da entrega mensal de cabazes. No CASA - Centro de Apoio ao Sem-Abrigo, há "um escalar do número de pedidos de ajuda nos últimos meses, tanto no que toca a novas pessoas em situação de sem abrigo como ao nível das famílias, pedidos de cabazes e outras ajudas", refere Ana Salão, da coordenação do CASA.
Além das 600 refeições diárias confecionadas e distribuídas pelas ruas do Porto (que não diminuíram desde a pandemia), o CASA entrega, quinzenalmente, 132 cabazes "a famílias carenciadas e em risco".
"JÁ NÃO HÁ DONATIVOS"
"O cenário tem sido muito grave. Nós pedimos comida e ninguém vem trazer. Já não há donativos", revela Francisco. Além das mais de 300 refeições diárias distribuídas nas traseiras da igreja do Marquês, a associação ajuda, com entrega de cabazes, mais 50 famílias carenciadas, onde se incluem cerca de 80 crianças.
A gestão dos agregados faz-se com "um bocado de ginástica". "As famílias andam a comprar menos: produtos mais baratos ou em promoção. Mas há uma coisa muito triste que está a acontecer: as mães e os pais andam a deixar de comer para dar aos filhos, com vergonha de pedir. Só quando deixam de ter o que lhes dar é que perdem a vergonha. Ligam e ouço pessoas a chorarem ao telefone, a dizer que precisam de ajuda".
"muita fome escondida"
Na sombra desta realidade "há muita fome escondida", acredita Marisa Barroca, da Associação de Solidariedade Social Mercado dos Santos. Ao mesmo tempo, a ajuda "chega com mais dificuldade e a quantidade que entregam é reduzida". "Mas explicam-nos porquê: 50 euros já só dá para comprar metade dos produtos. Estamos a falar de coisas tão básicas como maçãs", nota.
Perante este cenário, a própria associação teve de reinventar-se. Como têm nos armazéns muita roupa acumulada, decidiram que, quem precisar pode ir buscar um saco de roupa, em troca de um com produtos alimentares. Para entrar em contacto, basta enviar uma mensagem à associação através da sua página no Facebook.
No entanto, no que toca à alimentação, falta tudo nos armazéns das instituições: massa, arroz, atum, leite, óleo, azeite, grão. À medida que falta comida para distribuir, os pedidos de ajuda continuam a aumentar em todas as associações e também não há voluntários suficientes para ajudar a responder a toda a gente.
Se continuar assim, "vamos ter de começar a ter critérios", lamenta Marisa Barroca. "Primeiro, os doentes, as crianças e os idosos".
Estamos aflitos. O armazém está vazio
A noite está fria e há mais de cem pessoas nas ruas do Porto à espera dos kits do CASA - Centro de Apoio ao Sem-Abrigo. Em cada um dos 140 sacos está um recipiente com comida quente, um pão, bolo, dois iogurtes e fruta. É quinta-feira e são 20.30 horas. A carrinha está carregada. Começa a ronda pela cidade. O cenário é, no mínimo, desumano. Não sabemos de onde vieram, mas já há quase dez pessoas a pedir comida junto à carrinha do CASA, que parou há segundos na Rua de Nossa Senhora de Fátima. Cinco minutos depois, já não há nenhum utente junto dos voluntários. É nessa altura que aparece um casal. Recebe dois kits. Pede mais um. O diálogo terminou ali. Envergonhado, de sacos ao peito a tentar manter a comida quente, vai embora. "São caras novas", garante Miguel Pinto, voluntário e coordenador da equipa de rua da associação.
"As crianças ficam sempre em casa", nota Natália Coutinho, coordenadora da delegação do CASA no Porto. "O pai ou a mãe vêm buscar a comida e levam", observa, acrescentando que, por dia, há cerca de cinco novos pedidos de ajuda. "Estamos aflitos. O armazém está vazio", desabafa.
"Têm café?"
A equipa já conhece bem a cidade e quem por lá dorme. Por isso, quando se apercebe que faltou dar de comer a alguém, vai às escadas ou à entrada do prédio habitual e deixa o saco junto à pessoa. Às vezes, dois. Para o almoço do dia seguinte.
"A prioridade destas pessoas não é a alimentação", constata Natália, à medida que nos aproximamos do Bairro de Pinheiro Torres. Lá, a carrinha só está autorizada a parar do lado esquerdo da estrada. Entre os utentes, os efeitos da toxicodependência são visíveis. São todos muito magros e restam-lhes muito poucos dentes. "Têm café?", perguntam, à procura de uma bebida quente.
São 23 horas. "Pronto. Agora, vamos para casa, aquecemo-nos com um banho quente, dormimos confortáveis , e estas pessoas continuam aqui", suspira Natália.