Manuel e Maria ficaram sem um filho, que seguia num dos carros caídos ao rio. Nem o dinheiro recebido pela morte teve paz.
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Se Manuel Gonçalves pudesse usava as navalhas com que faz a barba aos clientes para cortar "a mágoa e a revolta" que sente há 20 anos pela morte do filho. Sentado na cadeira da barbearia em Cortinhas, Sardoura, o homem de 63 anos podia usar o rádio com cassetes para puxar a fita atrás até carregar na tecla daquele domingo em que foi acordado pela mulher. "Põe-te aí descansado, olha que caiu a ponte e o nosso filho não está em casa", atirou-lhe Maria, que adivinhou o pior. "Mal ouvi a notícia, soube que tinha perdido o meu filho. Há coisas que só uma mãe sente e eu disse logo ao meu marido, que não queria acreditar". O coração de Maria, onde "Paulito" se aconchegava tantas vezes, tinha disparado.
As autoridades foram alertadas muitas vezes e nada fizeram. Foi preciso morrer tanta gente para fazerem uma ponte nova. É isso que me revolta, isso e as promessas feitas na hora da desgraça, muitas não cumpridas
Paulo Gonçalves, 21 anos, foi nessa tarde com a namorada fazer umas compras ao Porto. Foi no regresso que o "Passat" cinzento do trabalhador da construção civil, um dos três carros envolvidos, caiu com a ponte. A travessia que Manuel tantas vezes sentiu abanar naquela zona do pilar. "As autoridades foram alertadas muitas vezes e nada fizeram. Foi preciso morrer tanta gente para fazerem uma ponte nova. É isso que me revolta, isso e as promessas feitas na hora da desgraça, muitas não cumpridas". Vinte anos de tristeza só alegrados pelo nascimento do neto Rui.
A barbearia esteve fechada nos três meses seguintes. Manuel não conseguia trabalhar, mas com apoio do psiquiatra conseguiu voltar a fazer o que sabe. "Fez-me bem, apesar de algumas coisas que ouvia...". Não esquece a cliente que dias depois do pagamento da indemnização pelo Estado, cerca de 100 mil euros, lhe disse que "vocês agora estão bem, com a fortuna que receberam". O dinheiro atraiu falsos amigos e familiares. "Chegavam a telefonar-me de madrugada para pedir dinheiro emprestado". A quantia, revela, "foi para ajudar um filho e um cunhado na compra de um terreno e na construção de uma casa".