Guerra aberta entre Rui Moreira e o bispo do Porto, depois de a diocese ter vendido prédios sem avisar. Os moradores temem ser despejados.
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No dia em que a Diocese do Porto fez a escritura da permuta de 15 casas na Rua das Eirinhas, no Bonfim, por um apartamento T0, na Rua da Boavista, avaliado em 230 mil euros - como avançou o JN na edição do passado dia 5 -, escriturou, também, a troca de dois prédios de três andares, no Centro Histórico da cidade, por um T1 naquela rua e com o mesmo valor do T0. O negócio foi celebrado a 10 de janeiro deste ano.
Antes, em setembro de 2024, a instituição já havia permutado um outro prédio, na mesma zona de Miragaia, por um apartamento de tipologia um e também a construir na Rua da Boavista, este avaliado em 200 mil euros. Nas três permutas efetuadas pela Igreja, há inquilinos envolvidos que receiam o despejo.
No caso da Rua das Eirinhas, a Diocese do Porto atribuiu um valor de cerca de 15 mil euros a cada habitação, uma verba quase 20 vezes abaixo das que têm sido praticadas no mercado imobiliário e que totalizou os 230 mil euros do T0. No Bairro das Eirinhas, que foi doado por testamento ao Seminário de Vilar nos anos 1960, os 45 moradores que vivem há décadas nas 15 casas temem ser despejados pelo novo dono.
Todos os apartamentos que passaram para a diocese ainda vão ser construídos a partir da obra de ampliação de uma casa na Rua da Boavista a ser feita pela empresa de construção sediada na Póvoa de Varzim com a qual a Igreja celebrou as três permutas.
Datada de 10 de janeiro, a escritura dos dois prédios de Miragaia, à qual o JN teve acesso, indica que um dos edifícios, localizado entre as zonas das Virtudes e da Alfândega, foi transacionado por 100 mil euros e outro por 130 mil, ambos valores bastante inferiores aos que são praticados no mercado imobiliário da cidade, onde têm sido transacionados prédios por milhões de euros.
Tem de deixar a casa
O JN soube ainda que, em setembro passado, a diocese alienou um outro imóvel vizinho dos prédios que permutou no início deste ano, também ele situado entre as ruas do Cidral de Baixo e do Cidral de Cima, tal como os dois edifícios permutados por uma habitação T1. Esse prédio, igualmente de três pisos, foi trocado por outro T1, também a construir como os restantes fogos, e igualmente situado na Rua da Boavista, este avaliado em 200 mil euros. Neste caso, uma moradora foi abordada, ainda no ano passado, por um dos sócios da empresa de construção, no sentido de deixar a habitação.
Nascida e criada na Rua Cidral de Baixo, onde a avó, que a educou, foi arrendatária durante mais de 60 anos, Vânia Santos perdeu o chão quando o novo dono do prédio que fora doado à Igreja lhe comunicou que teria de deixar a casa onde sempre viveu. Alheia às intenções da diocese de alienar o imóvel, pediu, em 2021, um empréstimo de 25 mil euros para fazer obras na casa, que continua a pagar.
Os três edifícios, que são contíguos, foram doados à Igreja - de acordo com uma moradora, a doação foi feita pela portuense Maria Amélia Alves Fernandes -, estando a maioria das habitações arrendadas. Também as 15 casas das Eirinhas foram doadas à diocese, mas por Laura Freitas Lima de Castro.
Cidade foi propriedade da Igreja durante três séculos
Foi em 1120 que a rainha D. Teresa, mãe de D. Afonso Henriques, doou o burgo de Porto e seu couto à Sé e ao bispo D. Hugo. As ligações da urbe à Igreja são, assim, anteriores à própria nacionalidade, uma vez que Portugal foi fundado em 1143. Durante mais de três séculos a cidade foi governada pela Igreja. Só no reinado de D. João I, em 1406, o Porto voltou para a alçada da Coroa, acabando assim um longo diferendo entre o clero e a burguesia portuense, que há muito defendia o fim do poder da Igreja na cidade.
O episódio transformou-se num dos mais marcantes da história da urbe, que deixava para trás o regime senhorial. "Os portuenses passavam, a partir daí, a ser senhores do seu próprio destino", assinalou Germano Silva, numa das suas crónicas no JN.
Contra privilégios
Cidade burguesa, o Porto sempre contestou os privilégios herdados ou adquiridos por nascença, pelo que, tal como o clero, também os nobres não tinham vida facilitada. Aliás, ao contrário do resto do país, no Porto havia fortes restrições à permanência de nobres e membros do alto clero. Apesar disso, houve bispos que marcaram a vida do Porto e do país, sendo D. António Ferreira Gomes um caso exemplar. O bispo destacou-se por ter feito frente a Salazar, ficando para a história a carta que escreveu ao ditador, com denúncias sociais e questões de ordem política.