O legado adaptou-se, mas não se perdeu no Porto. Portugueses são a minoria no público que visita os restaurantes.
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O ponteiro bate nas 21 horas, fecham-se as portas e baixam-se as luzes. O barulho normal que se ouve num restaurante desaparece. "Silêncio que se vai cantar o fado"- a expressão marca o início de uma longa noite nas casas de fado da Sé do Porto, mas nem todos a entendem.
O turismo alterou o público dos restaurantes tradicionais e jantar ao som da típica música portuguesa sofreu as suas mudanças. Nas mesas, os portugueses estão em clara minoria e os que estão são emigrantes. Mas no palco, a tradição permanece intocável, desde a guitarra ao xaile ou da voz ao sentimento.
Restaurante o fado
"É o maior palco que existe"
Os irmãos André e Ricardo Lopes de Almeida cresceram no meio dos fados. Hoje são a geração responsável por dar continuidade ao legado da família. "Estamos a dar seguimento ao trabalho dos meus avós e dos meus pais", partilha André. Mas continuar um negócio familiar, exigiu que os irmãos tivessem "um pé na tradição e o outro na atualidade".
Contudo, há coisas que permanecem inalteradas e "para um fadista, a casa de fados continua a ser o maior palco que existe". Quem o diz é Patrícia Costa, artista daquele restaurante. "A experiência de cantar com os músicos ao nosso lado, de sorver todo o discurso poético, com as pessoas em silêncio e a pouquíssima distância de nós", são características das quais não abdicaria, frisou a fadista, que canta desde os cinco anos.
O restaurante distingue-se por ser um dos mais antigos do Porto, mas também por ser o único que inclui um violoncelo no elenco. É pelas mãos de Susana Castro Santos que o instrumento completa o tradicional fado. Ali, fá-lo há 11 anos. "O primeiro impacto é sempre muito engraçado. Quando entro na sala e os clientes veem o violoncelo, eles estranham e não estão à espera", conta a artista.
Hoje, "O Fado" mantém-se uma referência tanto para os artistas como para os clientes. Foi este o restaurante que, por exemplo, abriu as portas à fadista Gisela João e que continua a receber pessoas de renome, como Pinto da Costa.
Taberna real do fado
"Uma experiência para os turistas"
O equilíbrio entre a tradição e a inovação sente-se no momento em que se entra numa das casas de fado mais recentes no Porto. A Taberna Real do Fado abriu em 2017, pelas mãos de Carlos Soares. "É uma aposta vencedora desde o primeiro dia". garante. "Entre a oferta e a procura, há uma pitada de modernidade", conta o proprietário. Seja no menu fixo, que é "o mais eclético e atual possível" - com prato vegetariano, por exemplo - ou com as mesas totalmente ocupadas por turistas. Nos cerca de 50 lugares, não havia portugueses. Apesar da modernização, a fadista Rute Rita sublinha: "O público português dá outro fascínio porque podemos cantar verdadeiramente fado".
Jantar ao som do fado era um hábito cultural quase que diário no século passado. Hoje, já não são os portugueses que mantêm estas casas. "Deixou de ser o entretenimento comum para ser uma experiência dos turistas", refere Carlos Soares, acrescentando que, dos portugueses que procuram a tradição, "ou são provenientes de outras zonas do país ou são emigrantes".
Para Rute Rita, o fado vai sempre permanecer nos portugueses, mesmo com uma sala cheia de turistas. "O peso nos ombros é ainda maior quando temos um patriota à nossa frente", acrescenta.
Baixam as luzes e Rute fecha os olhos e começa a cantar. Ouvem-se das mesas comentários entre os clientes, mas poucos são os idiomas facilmente reconhecíveis. Mesmo sem perceber uma palavra, há quem se emocione. "É o sentimento. Mesmo sem entenderem o poema, nós transmitimos a mensagem através das emoções", diz a artista.
Casa da Mariquinhas
As novas gerações e os precursores
"Mais do que o futuro, é o regresso ao passado". É assim que o gerente da Casa da Mariquinhas, Jorge Couto, encara os 55 anos do estabelecimento, festejados na passada segunda-feira.
Quem a visita, facilmente percebe que a casa nasceu em 1968. O espaço é pequeno e as paredes de granito transpiram fado, através de recordações emolduradas.
O restaurante foi marcado por dois momentos: o seu nascimento e o seu renascimento, que aconteceu dez anos depois de ter fechado portas em 2001.
A cultura está em constante mudança e, por este motivo, "é preciso apoiar as gerações antigas e fundi-las com as mais novas, porque o fado é uma tradição que passa de boca em boca e, só assim, é possível passar o testemunho", partilha Jorge Couto.
É inegável que a procura turística dinamizou exponencialmente a economia à volta das casas de fado. "Só para ter uma ideia, em termos internos a Mariquinhas deu origem a mais duas casas no Porto: o Pátio da Mariquinhas e as Arcadas de São Jorge", diz o proprietário.
Aos 55 anos de existência, a Casa da Mariquinhas atingiu um grande nome, a nível internacional. Mas o sucesso não interfere com o compromisso que está na base do restaurante: "Vamos continuar a cumprir a tradição e apostar na cultura portuguesa. Tal como os nossos precursores e a gerência anterior", concluiu o gerente que se uniu à GAS Porto para celebrar os 55 anos (ler texto na página 20).
Mal cozinhado
"A história não é como a pintam"
Portugal foi o ponto de encontro entre a brasileira Lívia Baptista, que está a residir em Los Angeles, e os amigos do Brasil. Para celebrar o aniversário da brasileira, o grupo decidiu visitar o Mal Cozinhado.
"Estou encantada. Não conhecíamos o fado. É uma experiência enriquecedora", disse a aniversariante.
A casa de fado, situada na Ribeira do Porto, nasceu em 1979 como um negócio de família. Por lá passaram grandes nomes, desde Dulce Pontes a Carlos de Carmo. Mas foi Amália Rodrigues que marcou o estabelecimento. "Eu tinha 16 anos quando ela esteve aqui. Foi deslumbrante. Mas na verdade, só depois da morte é que reconheci o verdadeiro valor que ela tinha", conta Luís Oliveira, atual proprietário do restaurante.
Ao contrário das restantes casas que o JN visitou, o Mal Cozinhado marca-se por um espaço amplo e sereno. A presença da figura da Amália está por todo o lado, desde os bustos aos quadros.
Mas, como é comum em outras casas, também são os turistas que agora invadem o negócio todos os dias. A presença é importante, mas Luís Oliveira recorda que nem todo o ano há turistas: "A história não é assim como a pintam. Diria que são seis meses para faturar e seis meses para gastar". No caso do Mal Cozinhado, o proprietário teve de vender bens pessoais para aguentar a pandemia.
Além dos turistas, também é comum a todas as casas a escassez de apoios sociais, agudizando a ideia de que o fado está unicamente em Lisboa.