Os tempos até podem ser diferentes, mas Júlio Penela e Manuel Encrenca continuam "levados da breca". Um nascido no meio dos brinquedos, outro feito homem entre eles, são hoje os únicos em Alfena, freguesia de Valongo, a levar muito a sério uma profissão que põe outros a brincar. Mas não se orgulham por estarem sós.
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Quando o bisavô de Júlio Penela fundou em 1921 a Pe-Pe JATO, Alfena começava a construir um título, que apenas pelos resistentes ainda não lhe foi tirado: é a capital do brinquedo. Aquela que um dia foi a maior fábrica de brinquedos tradicionais em Portugal (chegou a ter 90 trabalhadores) hoje só emprega três pessoas. Mas foi conseguindo sobreviver às muitas crises. A última, bastante séria, quase pôs fim à "brincadeira". Júlio explica: "Não fechou porque eu nunca abandonaria o brinquedo. Era uma maldade se o fizesse".
O agora empresário, 46 anos, tentou em vão fintar o destino. "Em novo, estudei várias coisas: andei em Línguas, depois queria seguir História, depois quis ser padre, depois quis ir para os pupilos do Exército", porque também lhe passou pela cabeça ser "um generalzito qualquer". Mas acabou, como os restantes homens da família, à frente da Pe-Pe JATO. É que, afinal, descobriu que o que gosta mesmo "é de brincar", diz, divertido. "E o brinquedo é uma paixão".
Antigamente, o forte eram "as gaitinhas". Agora, o que sai mais são os táxis e as carrinhas pão de forma. "Volkswagen, mas sem motores adulterados", brinca. Delas, faz uma média de 3000 por ano. Nada como outrora: "eram 40, 50 mil...". Júlio fala de coisas sérias sempre a rir. E diz piadas. "Os chineses deram cabo de tudo com as bonecas que choram e fazem chichi". Apesar dos lamentos, prefere continuar com o que tem e "ser fiel às raízes", ao tradicional. Até porque o vintage está na moda. E os adultos, que são quem mais compra os brinquedos nas lojas e nas feiras, estão a ser tomados pelo revivalismo. Júlio questiona: "Quem nos garante que isto não volta tudo outra vez?".
Manuel nasceu Ferreira, mas hoje é Encrenca para toda a gente. Culpa dos jornalistas que lá foram há muito tempo e lhe colaram a alcunha. "Encrenca era o meu pai", queixa-se, bem-disposto. E Encrenca ficou o filho. E os brinquedos. Manuel trabalhou com o pai de Júlio. Era ele quem fazia os brinquedos em madeira. Mas as guerras (a segunda mundial e a colonial) viraram o dono da fábrica para o plástico. Coisa que Manuel não gostava. "Disse-lhe que me vinha embora". E ele? "Então, vai, respondeu. Se não der certo, voltas". Não voltou. Criou um negócio próprio em casa. E lá se vai "safando" vai para 60 anos. "Se não fôssemos nós [inclui na conversa Júlio], o brinquedo morria"
Hoje, aos 82 anos, "um problema num pulmão" leva-o constantemente ao hospital. As médicas insistem: "Você não trabalhe mais!" Mas os brinquedos em pinho são um vício: "Se não trabalhar... morro!". E para estar bem tem de ter ao lado Juliana, a mulher, e Florinda, a irmã. Todos a "fazer ciclistas e pombinhas". "E a brincar", diz, a rir. Tem clientes fiéis. "Isto agora fraquejou um bocadito. Devido aos plásticos dos chineses, que têm coisas baratuchas... E o povo inclina-se para aquilo", lamenta. O sorriso volta depressa. Basta estar com os brinquedos nas mãos. É uma criança grande?, perguntámos. "Sou, sim".