Foi há quase 18 anos, a 23 de fevereiro de 2002, que o comboio de via estreita cruzou pela última vez a Trofa, sob o compromisso de dar lugar ao metro, que nesse ano se estreou no Porto e não passou da Maia até hoje.
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É dia de má memória para o concelho do Baixo Ave: ninguém gosta de evocá-lo, mas é impossível esquecer porque a enorme cicatriz está lá, aberta e funda como a revolta da população que clama por "justiça", exigindo que os carris voltem ao canal que tem os cerca de sete quilómetros desde o Castêlo da Maia até à cidade da Trofa devorados pela vegetação.
O JN voltou a ouvir pessoas que há anos relataram vidas fora dos eixos pela falta de um metro que poderá nunca sair do papel. Na sexta-feira, Eduardo Vítor Rodrigues, que preside à Área Metropolitana do Porto, disse que o destino a dar aos 800 milhões de euros que o Governo quer investir em transporte pesado na região tem de ser baseado em estudos de procura.
Só o carro é alternativa
Com pouco mais de 20 anos de vida, Alexandra e Inês não têm memória do comboio que em meia hora levava ao centro do Porto as gentes do Muro, onde vivem, mas conhecem de cor as agruras de já não haver ali os carris que atraíram moradores, tal como à volta, em Alvarelhos e Guidões.
"Contentes" por terem conseguido "ficar em casa", a estudar no Porto, as amigas cedo perceberam que o feito não seria garante de tranquilidade: com quase quatro horas perdidas por dia nos transportes entre Muro e Porto - que distam uns 20 quilómetros -, uma insana e estafante correria para cumprir horários de transportes alternativos desajustados e uma guerra de nervos para conciliar transbordos, as estudantes tiveram de optar pelos carros oferecidos pelos pais, o que reduziu aquele tempo para metade.
São mais dois veículos na concorrida EN14, mas para evitar o "ridículo de esperar uma hora e 45 minutos por um autocarro para ir do ISMAI até casa", que, como nota Inês Amorim, "é uma distância pequena", cerca de quatro quilómetros. "Se [os governantes] incentivam as pessoas a andar de transportes públicos e a reduzir os automóveis, não é assim que vão conseguir. Estão a fazer o contrário: há carros na estrada desnecessariamente", alerta Inês, que crê que, "se houvesse metro, muita gente não ia encher a estrada com carros".
Alexandra Freitas conta que "foi muito doloroso" ficar sem carro de setembro a dezembro e voltar a depender dos transportes alternativos da Metro, que "reduziram os horários". "Um dia, perdi o autocarro das 9.35 horas e já não tinha como estar às 13.45 horas no Porto, onde ia ter uma reunião importante com um professor. Entrei em pânico, porque o próximo autocarro é só às 13.05 horas. Isto não cabe na cabeça de ninguém, e é muito triste já não ter alternativa, antes das 10, para estar no Porto às 13.45 horas", condena a jovem, que voltou a ter de passar no antigo canal, entre a Rua Dona Laura e o Largo da Estação, para chegar à paragem, na EN14. "No inverno, há imensa lama", lastima.
Dolores Ribeiro, que viu o negócio do café naquele largo ficar quase tão parado como o metro no ISMAI, e Fátima Sousa, moradora no Muro, indignam-se com o estado de degradação com que têm de conviver diariamente, ali ao lado, onde o antigo canal ferroviário foi engolido pela vegetação e o edifício da velha estação se transforma numa ruína.
Canal "é um esgoto aberto"
"É um esgoto aberto, um matagal. É horrível. E depois vêm os ratos e as cobras. Veem-se ratazanas a passear", testemunha Fátima, apreensiva com o "perigo" iminente. "Parece que está tudo uniforme e que não há um fosso. Imagine que vão crianças brincar para ali e não vêm o fosso. Isto não tem jeito, e tem de levar uma volta, porque aqui começa a ser um gueto". Dolores Ribeiro olha em volta e detém-se na estação: "É um crime ter isto assim. É património".
Terrenos amputados
Mas os prejuízos patrimoniais também têm nomes próprios. Como os de Augusto Miranda e de António Correia, cujos terrenos continuam cativos por conta de uma infraestrutura prometida há 20 anos. Em ambos os casos, a faixa de proteção não edificante de 20 metros de cada lado da linha impossibilita a construção de casas - era esse o objetivo das duas famílias - e tira valor comercial aos imóveis, mas não houve direito a compensações.
Respeitadas as distâncias impostas, sobrariam apenas corredores de área construtiva nos dois terrenos, que estão até hoje rodeados das silvas que grassam no canal e apenas têm servido para cultivar hortícolas. "É para pôr couves. Para que é que isto serve? São vidas adiadas", indigna-se António, que viu o terreno ficar com uma área útil de dois metros de largura.
Augusto teve de gastar 50 mil euros noutro terreno, com metade da área e valor inflacionado pelos anúncios da chegada do metro, e tem couves naquele que confronta com o canal. "O número de metros que exigem de salvaguarda inviabiliza a construção", lamenta Augusto, que confessa sentir-se "injustiçado".
Cronologia
Um metro de avanços e recuos
Fevereiro de 1932 - A via estreita chega à Trofa, permitindo a ligação ao Porto (estação da Trindade).
Fevereiro de 2002 - A ligação de comboio é suspensa para o canal acolher o metro, na primeira fase da rede.
Maio 2007 - É assinado um memorando de entendimento entre o Governo e a Junta Metropolitana do Porto para a inclusão da Linha Verde até à Trofa, na segunda fase da rede.
Setembro 2009 - No dia 5, a então secretária de Estado dos Transportes, Ana Paula Vitorino, presidia à cerimónia de lançamento do concurso público para a construção dos 10,5 quilómetros de linha até à Trofa, no valor de 140 milhões de euros.
Dezembro 2010 - Foi anulado, por falta de verbas, o concurso público anunciado por Vitorino antes das eleições legislativas, mas que só foi de facto lançado em dezembro de 2009.
Outubro 2015 - dois dias das legislativas é anunciada, por 36,7 milhões de euros, a construção da Linha Verde desde a estação do ISMAI até ao Muro, fruto de um protocolo entre as câmaras da Maia e Trofa, Metro do Porto e Comissão de Desenvolvimento do Norte (CCDRN), homologado pelo Governo.
Julho 2016 - Um estudo da Metro do Porto antevê prejuízos para a exploração do troço entre a Maia e o Muro e o Governo abandona o projeto.
Janeiro 2020 - O ministro do Ambiente anuncia que a Metro do Porto vai apresentar, em quatro meses, um estudo para o canal da antiga via estreita, e lembra que, agora, cabe à Área Metropolitana do Porto decidir sobre os projetos de expansão da rede do metro.