Lixo à mistura com peças de vestuário sujas e gastas, eletrodomésticos e móveis partidos, uma casa de banho com baratas a correr pelas paredes e fezes pelo chão, que indiciam a presença regular de ratos no interior da casa.
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Foi este o cenário que a equipa de Ação Social da Junta de Freguesia de Santo António (JFSA), em Lisboa, encontrou, há dias, no espaço onde vivia uma mulher de 53 anos, na Rua do Cardal de São José, paredes meias com a Avenida da Liberdade, a artéria mais luxuosa da capital.
Em apenas uma semana, foi o terceiro caso detetado pelos serviços da Junta. Um homem de 80 anos, na Rua Luciano Cordeiro, outro sensivelmente da mesma idade, na Bernardino Lima, foram encontrados a viver em condições semelhantes, naquela que é considerada a zona mais chique da capital e onde, nos últimos anos, se assistiu ao crescimento das vendas de apartamentos de alto luxo.
Destes três casos, apenas um dos indivíduos tem família, que desconhecia a situação, mas que, ao inteirar-se da mesma, de imediato tratou de acolher o idoso. Mais grave é o caso da moradora no rés-do-chão da Rua do Cardal de São José, até por se tratar de um mulher ainda em idade ativa, mas com "problemas do foro psicológico e sem família", segundo Vasco Morgado, presidente da JFSA, que ao JN recorda o "cenário dantesco" que ele próprio encontrou no dia em que conseguiu entrar em casa da senhora. "Já sabíamos que acumulava lixo, que tinha problemas. Andávamos há meses a tentar convencê-la a aceitar ajuda, mas só agora nos permitiu entrar em casa", explica o autarca.
Iniciado o diálogo, a mulher acabou por compreender que os técnicos da Junta estavam ali para a ajudar e deu autorização para que a residência fosse limpa. "Fechámos a casa e deitámos fora o lixo, mas vai ter de ser alvo desinfestação. A par disso, vamos tentar que a senhora tenha acompanhamento psicológico", revela o presidente da JFSA.
Para Vasco Morgado, estes casos são "a consequência da solidão que existe no coração da cidade". Chocado com a dura realidade, diz mesmo que, "hoje em dia, há mais solidão em Lisboa do que numa aldeia da Beira ou de Trás-os-Montes".
Fim da rede de vizinhança
"Com a gentrificação que retira moradores os e os substitui por turistas, a rede de vizinhança deixou de existir. Há meia dúzia de anos se uma pessoa não aparecia dois dias no café ia logo alguém bater-lhe à porta. Agora são cada vez menos os moradores, as ruas são mais frequentadas por Ubers do que por taxistas", sublinha.
A mulher e o outro idoso que não tem família estão provisoriamente a viver num hotel da freguesia. A Junta está a fazer todos os esforços para acompanhar ambos, mas, como lembra Vasco Morgado, "os poderes são limitados".
"É preciso ir mais longe na descentralização de competências, porque somos nós, os presidentes de Junta de Freguesia, somos quem está mais perto das pessoas, quem conhece melhor a realidade. Devia haver maior intervenção dos delegados de Saúde, facilitar os internamentos compulsivos, entre outras medidas", conclui o autarca.