A margem do rio Tua, em Mirandela, é um santuário. Leandro escolheu deixar-se engolir por aquelas águas há quase duas semanas, porque na escola E.B. 2,3 Luciano Cordeiro havia colegas que lhe batiam sem que ninguém visse. Nem professores nem funcionários nem porteiros. Nunca ninguém viu nada, embora a violência - garantem os únicos que aparentemente viam: irmão e primos - fosse diária e descarada. "A mim, não me batem mais", terá sido a sua frase de despedida.
Corpo do artigo
No santuário, que é agora a margem do rio que lhe guarda o corpo de 12 anos, há mensagens de colegas ("Adoramos-te, Leandro"); gritos de revolta ("Será que a sua dor nunca foi visível?"); apelos indignados ("Que ninguém seja presidente a fingir; tenham a humildade de se demitir!"). E há velas, muitas, vermelhas e brancas, cartazes com nuvens que choram, com flores que murcharam, com borboletas tristes. Dois ramos pendurados na árvore. E a fotografia do rapaz. Aquele santuário improvisado de desenhos e palavras parece o único sítio da história onde ainda cheira a infância. Há sol e silêncio. Há 15 dias chovia torrencialmente e, em vez da infância, havia gritos, crianças a comportarem-se como adultos, porque os adultos não viram, não estavam. Crianças a arriscar a vida para salvar a vida de Leandro, nome que o país sabe hoje de cor.
Leandro nunca se queixava
Há quase 15 dias era terça-feira. Leandro acordou mais tarde do que o habitual. "O tempo estava muito mau e ele só tinha aulas às 9.15 horas. Levei-o eu, no carro, em vez de ir de autocarro com o irmão, como de costume, às 7.15 horas. Ia contentíssimo", recorda a mãe, Amália, vestes negras, olhos pesados, voz embargada, saturada de contar a tragédia a tantos jornalistas que não lhe largam a porta, mas nunca a ter contado à escola, cujo director "nunca apareceu, nunca ligou", nunca explicou por que razão à hora de almoço daquele dia o filho estava no fundo rio e não no interior do estabelecimento.
"Ligaram-me nesse dia, eram miúdos. É a mãe do Leandro?, perguntaram. Então, venha depressa, que o seu filho caiu ao rio. Ouvi gritos, desliguei, saí a correr". O coração de uma mãe nunca está preparado para ouvir isto. Pegou no carro, as pernas a tremerem-lhe "como varas verdes", ela acelerar, o carro a plissar. Estacionou antes de chegar ao rio. "Vi uma colega no passeio, parei, pedi-lhe para ser ela a levar o carro". Quando, finalmente, chegou ao local, já era tarde. "Vi os miúdos, os bombeiros, não vi o meu Leandro. Perdi-o. Uma mãe não está preparada para isto, não está".
Amália está sentada à lareira. Acabou de chegar a casa, casa humilde, inacabada, na aldeia de Cedaínhos, a 15 quilómetros da cidade. Passou a tarde no curso profissional de geriatria. "Não posso ficar em casa, tenho mais dois filhos. Sabe Deus a dor e o sacrifício de cada dia, mas tenho de andar, tem de ser." Armindo Nunes, o marido que equilibra o orçamento com o que a terra dá, está ali de pé, mãos nos bolsos, mudo, quedo, hirto. Mesmo quando abre a boca para falar, as palavras não lhe saem. Acena com a cabeça, é com a cabeça que diz que a voz não sai. Desde que perdeu o filho, já foi para o hospital várias vezes. E Márcio, o gémeo, recusa falar. Abre uma única excepção para uma rajada antes de sair dali: "Batiam todos os dias no meu irmão, quase sempre os mesmos, a Sara e o Joel. E o Leandro dizia que ia fazer queixa, mas depois nunca fazia. Os funcionários não faziam nada porque também já tinham sido ameaçados com navalhas".
A mãe ouve e depois sorri devagarinho com a recordação de Leandro. "Ele era assim, tinha pena de toda a gente, não era de se queixar. Se lhe faziam mal, ficava triste na hora e logo a seguir passava-lhe. Se eu estava na cozinha e não precisava da ajuda dele, aquela criança era incapaz de me deixar sozinha. Trazia o computador para aqui e ficava a fazer-me companhia enquanto eu arrumava. Para ele ter feito o que fez, têm que lhe ter feito muito mal, muito mal, têm que o ter picado muito".
A família está a ser acompanhada por uma psicóloga do centro de saúde e da autarquia. E pouco diz sobre os responsáveis pela morte de Leandro. Dizem-lhes para esperar e eles esperam. Resignados. Mas Amália não resiste ao desabafo: "Os filhos dos professores têm dinheiro para andar em boas escolas; os nossos têm de ir para ali ser maltratados. Ainda dizem que ser pobre não é defeito?! É defeito e não é pequeno".
Relatório divulgado esta semana
Na escola, os jornalistas estão proibidos de entrar. E mesmo no exterior, o ambiente é agreste, desconfiado. À mais pequena abordagem, todos viram costas, disparam reclamações. "Acham que ainda não nos crucificaram o suficiente?", pergunta uma professora. As outras desviam-se automaticamente. Mesmo os pais não querem conversa; preferem deixar frases no ar sem nunca travar o passo: "Agora fecham tudo; mas até aqui foi o que se sabe".
O porteiro exibe o terror de quem sabe poder vir a ser considerado o único culpado. Mas no dia desta reportagem, ele estava lá, no seu posto, a controlar saídas e entradas. No entanto, nenhum aluno tem cartão de estudante ou papéis assinados pelos encarregados de educação para provar se podem ausentar-se do recinto. Aquele homem limita-se a abrir e a fechar o portão. O que teria mudado se estivesse ali no dia em que Leandro saiu em direcção ao rio? Com esta ausência de regras de segurança, provavelmente nada.
Mas as regras entretanto mudaram. Uma mãe está ali à beira das lágrimas, os agentes da Escola Segura estão a identificá-la. Está escandalizada. "A minha filha anda no 6º ano, magoou-se na aula, ligou-me a chorar e a Escola em vez de chamar a ambulância chama a polícia por eu ter entrado na escola?", grita, indignada.
Aparentemente, ninguém sabe o que pode ou não fazer nesta escola. O mesmo agente notifica o porteiro para responder ao inquérito sobre Leandro. As conclusões deverão ser divulgadas esta semana. Apesar de Ministério Público e PSP não terem aceite falar connosco, o JN sabe que há uma hipótese de colocar no suicídio o rótulo de acidente. Nesse caso, a culpa morrerá solteira.