Um dos mais infuentes cineastas da nossa era, David Lynch morreu esta quinta-feira, aos 78 anos. A sua obra foi distinguida com Oscar Honorário e Leão de Ouro.
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Ser aclamado pela indústria cinematográfica sem nunca abdicar da sua independência criativa foi um dos incontáveis feitos de David Lynch, o cineasta norte-americano falecido esta quinta-feira, aos 78 anos. Em agosto, o realizador revelou que lhe fora diagnosticado um enfisema pulmonar que lhe diminuiu drasticamente a capacidade respiratória. “Mal consigo atravessar uma sala. É como se caminhasse com um saco plástico na cabeça”, lamentou.
A notícia da morte foi avançada pelos familiares de Lynch, numa publicação nas redes sociais, em que apontavam o “grande vazio no mundo agora que ele já não está entre nós. Mas, como ele diria, ‘mantém os olhos no donut e não no buraco’”.
A singularidade da sua obra cinematográfica, a que se colam termos como “surreal”, “experimental” e “bizarra”, fez com que fosse cunhada com o seu próprio adjetivo. “Lynchiano” passou assim a designar um cinema onde o sonho habitava paredes-meias com o real. A propósito do ciclo de cinema “Os enigmas de David Lynch”, o crítico de cinema João Lopes defendeu, num artigo no “Diário de Notícias”, que “Lynch consegue a proeza singular de propor uma aproximação dos corpos e objetos com algo de realista, a partir daí sugerindo (ou melhor, mostrando) que qualquer contexto a que chamamos ‘real’ é feito de infinitas camadas de impulsos imaginários que põem em causa qualquer ilusão de transparência”.
Todos esses pressupostos já podem ser encontrados nos primórdios da sua carreira, na segunda metade da década de 1970, após uma formação académica, na Pensilvânia e em Los Angeles, muito centrada na componente artística e experimental do cinema. A marca e a influência exercidas pela cinematografia do autor de “Lost highway” são ainda mais admiráveis se levarmos em conta o facto de, ao contrário do que é cada vez mais hábito, não ter tido necessidade de dirigir um incontável número de filmes, com consequências evidentes para a qualidade dos mesmos. Perfecionista e metódico, aprimorava as películas com meticulosos desenhos sonoros e sobreposições de imagens que lhes conferiam um caráter quase onírico. Por isso, mesmo com uma obra escassa q.b., quase todos os filmes que a compõem deixaram um traço, no público ou na crítica, como são os casos de “Veludo azul”, “Coração selvagem”, “Twin Peaks”, “Inland empire” ou “Uma história simples”, desconcertante pela forma como (aparentemente) rompe com os modelos tipicamente lynchianos. Em 2019, a Academia de Hollywood atribuiu-lhe um Oscar Honorário em reconhecimento da sua carreira, galardão que se juntou ao Leão de Ouro de carreira em 2006 e a Palma de Ouro de Cannes em 1999.
Ciclo no Cinema Trindade dedicado ao realizador decorre até quarta
No mesmo dia do falecimento de David Lynch, o Cinema Trindade, no Porto, iniciou um ciclo que vai percorrer, nos próximos seis dias, algumas das obras essenciais do influente realizador. A seleção de filmes percorre diferentes etapas da sua obra e inicia-se com “Eraserhead - no céu tudo é perfeito”, a sua obra de estreia. Integram ainda o ciclo “Os enigmas de David Lynch” as películas “O homem elefante” (1980), “Uma historia simples” (1999), “Mulholland drive” (2001) e “Inland empire” (2006). As sessões estão marcadas para domingo, terça e quarta-feira, sempre às 21.30 horas.
Filmografia essencial
“Eraserhead”
O terror surrealista associado à obra de Lynch já era por demais evidente no seu primeiro filme, datado de 1977. Uma mulher abandona o seu filho após o nascimento, ao ser confrontada com o seu aspeto desumano, e cabe ao pai assegurar-lhe a educação.
“O homem elefante”
A estranheza e o fascínio suscitados pelo seu filme de estreia tiveram continuidade três anos depois com “O homem elefante”. A deformidade física volta a estar no cerne de uma história amplamente premiada.
“Coração selvagem”
Um dos raros êxitos comerciais do cineasta, “Coração selvagem” junta aos contornos dramáticos, romances e neo-noir do argumento um elenco fabuloso ( Nicolas Cage, Laura Dern, Willem Dafoe, Harry Dean Stanton, Isabella Rossellini...).
“Twin Peaks”
Antes da aclamada série televisiva, Lynch fez uma prequela que começou por dividir a crítica. Mais de duas décadas depos, retomaria, sem impacto, a história de Laura Palmer no cinema.
“Uma história simples”
Acusado de ser labiríntico, o realizador surpreendeu tudo e todos com a história comovente de um velho agricultor que faz centenas de quilómetros no seu trator para ir visitar o seu irmão, gravemente doente .