Idosos são despejados porque lei do arrendamento não protege todos os inquilinos com mais de 65 anos.
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Ana Maria tem 77 anos. Luís conta 75. Aos 48, a única filha do casal Rebelo tem uma incapacidade atestada de mais de 60% - tal como o pai, que todos os dias mede forças com uma doença degenerativa que lhe rouba os movimentos. Ainda assim, os três vivem há mais de ano e meio condenados ao despejo, que há de bater-lhes à porta em maio de 2025. As palavras de Luís são amargas: “O que vou fazer à nossa vida?”.
A angústia da família do Porto vive-se do Norte ao Sul, sobretudo nas cidades sujeitas a maior pressão imobiliária, porque atualmente os inquilinos idosos que não têm contratos antigos não dispõem de qualquer mecanismo legal que os proteja do despejo. Mesmo que estejam incapacitados ou doentes. Arrendatários e especialistas pedem, por isso, alterações à lei das rendas.
Em Gaia, Maria José Pinto e Manuel Pereira, septuagenários a morar desde sempre com os olhos postos nas águas do Douro e a mirar a Invicta, vivem sob a mesma espada. É a aflição de tantos idosos, a quem a lei não defende apesar da vulnerabilidade evidente. Desde logo, pela idade avançada, a que se soma, na maioria dos casos, a carência económica, que os impede de aceder a outras soluções habitacionais - dois fatores que, concordam José Fernandes Martins, da Associação dos Inquilinos do Norte, e Bernardo Alves, da organização Habitação Hoje, tornam ainda mais violento um processo de despejo na terceira idade.
No coração do Porto, António Ferreira enfrenta, aos 77 anos, a segunda ação de despejo intentada pelo senhorio em cinco anos. Aguarda o resultado do recurso feito pelo proprietário, após perder a ação na primeira instância. Se o tribunal der razão ao senhorio, o septuagenário fica “sem alternativa”. “Espero que isso não aconteça, senão é mais um sem-abrigo”, declara.
“Há a ideia geral de que as pessoas com mais de 65 anos não podem ser despejadas, e isso vem dos contratos de arrendamento anteriores a 1990, que, neste momento, são percentagens muito baixas”, contextualiza Bernardo Alves, que acompanha vários casos de idosos do Porto cujos senhorios estão a tentar retirar das habitações. Após aquele ano, ainda foi possível celebrar contratos vinculísticos, até à entrada em vigor do novo regime, em 2006.
“Móveis às costas”
Especialista em direito do arrendamento, José Fernandes Martins nota que “os casos têm aumentado, mas a conflitualidade em termos de litigância não, porque as pessoas procuram técnicos e soluções que não as arraste para tribunal”. Aliás, em muitas situações, “nada há a fazer porque a lei não permite”, assinala o causídico, lembrando que “qualquer contrato posterior a 2006 é precário, no sentido de ser suscetível de cessar no seu termo por livre arbítrio do proprietário”.
Contudo, alerta Fernandes Martins, tal “não confere ao proprietário o direito de mudar a fechadura”. No caso de o inquilino não entregar o imóvel no fim do contrato, o dono pode apenas avançar para tribunal com uma ação de despejo. Luís Rebelo sabe bem que deverá ser esse o desfecho para a família, mas, “sem solução” e “à espera de casa da Câmara” desde janeiro de 2023, encolhe os ombros: “Se não arranjarmos casa até à data em que temos de sair, a senhoria que faça o que tiver de fazer”.
Ana Maria aflige-se: “Pensávamos que já não íamos sair daqui...”. Está diante do marido, ambos abatidos pelo golpe, sentados na humilde e húmida casa que há 10 anos arrendaram na Ramada Alta, perto da Escola Carolina Michaëlis. “Com esta idade, nunca pensei ter de andar outra vez com os móveis às costas”, condói-se Luís. Caminha com o corpo débil apoiado nas paredes; os passos a pesarem-lhe como se arrastasse chumbo. “A gente nem dorme, a pensar. Para onde vamos com os cacos?”, atira a mulher, despedaçada.
É a fragilidade absoluta, a somar-se a vidas já difíceis, tantas vezes parcas em saúde e rendimentos. Como a de Manuel e Maria José, casal de Gaia que mora há 11 anos na casa que os senhorios querem ver livre até ao final deste mês, e onde já colocaram a placa “vende-se”. “Tenho 71 anos, a minha mulher tem 70. Para onde é que a gente vai? Para debaixo da ponte? É complicado. Querem pegar num casal e rua”, revolta-se Manuel Pereira, contando que os donos do imóvel não propuseram qualquer revisão do valor da renda, em alternativa ao despejo. “Foi só sair”.
“A minha mulher está muito em baixo; cisma que vamos para a rua.” Sem vislumbrarem outra solução, somaram os nomes à lista de espera para habitação social logo após terem recebido a carta de “oposição à renovação do contrato de arrendamento”, no final de 2023. Continuam à espera...
“É uma tristeza, sabe? Pensava que ficava aqui até ao fim dos meus dias. Nunca na minha vida pensei em andar com os tarecos às costas nesta idade. Custa muito, e que ninguém venha com coisas”, desabafa Maria José, que teme pela saúde do marido, que é doente cardíaco.
“Nunca deviam ter tirado a lei em que os velhos a partir dos 65 anos não podiam sair das casas”, condena a septuagenária, que confessa ter ficado “muito transtornada” quando soube que teria de deixar o exíguo T1. “O meu filho chegou a ver um T0, em Canidelo, por 800 euros. Agora, diga-me: como é que posso pagar um aluguer desses?” A pergunta é retórica: a reforma de Maria José não chega a 300 euros, e o marido recebe pouco mais de 700.
Moradores são joguetes
“A lei tratou as pessoas de idade de forma muito desrespeitosa”, observa José Fernandes Martins, aludindo à legislação de 2012, que haveria de ficar conhecida como “lei Cristas” ou “lei dos despejos” [ler ao lado]. “Temos uma lei que trata o arrendamento como um qualquer contrato de prestação de serviços de outra natureza, em que a casa, a ligação ao espaço e o direito de habitar sem sobressaltos não têm qualquer relevância e em que os proprietários têm o direito de rentabilizar e os moradores são joguetes que andam daqui para ali”.
Para o advogado, “só uma alteração legislativa que diga que uma pessoa com mais de 65 anos não pode ser despejada” é que poderá pôr fim a casos como os dos idosos ouvidos pelo JN.
“Não é o senhorio que tem de garantir o direito à habitação, e quem tem de compensá-lo é o Estado, e não o pobre do cidadão.”
1072 despejos
No ano passado, foram feitos no balcão do arrendatário e do senhorio 2672 pedidos especiais de despejo (mais 17% face a 2022) e efetuados 1072.
O que diz a lei
Legislação foi sendo alterada a partir de 1990. Do congelamento de rendas passou-se para o extremo da total precariedade do inquilino.
Direito fundamental na Constituição
O direito à habitação está consagrado no artigo 65º da Lei Fundamental. É um dos direitos sociais.
Antigo regime vigorou até 1990
Eram contratos vinculísticos, de caráter vitalício, e mantiveram-se invioláveis apesar das alterações legislativas efetuadas em 1990, não podendo ser denunciados livremente pelos senhorios. Hoje, abrangem apenas inquilinos idosos e são em número reduzido.
Cavaco cria o regime do arrendamento
Em 1990, o Governo de Cavaco Silva (PSD) criou o Regime do Arrendamento Urbano (RAU), que permitiu a fixação de prazos para novos contratos, assim como atualizações anuais das rendas de acordo com um coeficiente. As partes podiam estipular um prazo de duração do contrato - no mínimo, de cinco anos, automaticamente renovável por períodos de três anos -, desde que a cláusula constasse no texto do documento. A lei foi o primeiro passo na liberalização do arrendamento, e vigorou até 2006.
Novo regime impõe contratos a termo
Alterou o RAU, em 2006, criando o NRAU-Novo Regime do Arrendamento Urbano, que já não permite a celebração de contratos vinculísticos. É mantida a proteção dos contratos antigos, mas passou a ser possível atualizar estas rendas em 4% do valor patrimonial tributário do imóvel. Os contratos feitos até 2006 com menos de cinco anos e em que não constasse a cláusula referente ao termo são considerados vinculísticos.
“Lei dos despejos” em 2012
A Lei n.º 31/2012 ficou conhecida como “lei Cristas” (alusão à ex-ministra Assunção Cristas, do Governo de Passos Coelho, responsável pelo decreto) ou “lei dos despejos”, porque impôs a transição para o NRAU de inquilinos com menos de 65 anos à data, que passaram a ter contratos precários. Quem se opusesse invocando baixos rendimentos tinha um período de transição de cinco anos. Alguns pontos da lei seriam mitigados por governos PS. Como esse período, que passou para oito anos e, depois, para 10.
Menos proteção com lei de 2019
O regime transitório e extraordinário de 2018 protegeu idosos a morar há mais de 15 anos na casa. Em 2019, a Lei n.º 13 estipulou que não há lugar a despejo se, em fevereiro desse ano, o inquilino com contrato a termo tiver 60% de incapacidade ou 65 ou mais anos e residir há mais de 20 na casa. Os mais recentes não têm proteção.