Sara e Mara não param de rir: hoje o Fábio vai para o Primavera Sound de escafandro
Alerta de mau tempo para esta sexta-feira ameaça o festival Primavera Sound Porto. IPMA diz que vem aí chuva, relâmpagos, trovoada. Supostamente.
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Preâmbulo primeiro: a jukebox de SZA, a supernova do R&B e da neo-soul que magnetizou a multidão da primeira noite do Primavera Sound Porto, esta quinta-feira à noite, é colossal. Não foi um concerto, foi uma viagem espacial. Visualmente hipnotizante, a jornada musical é uma excursão marítima sideral. A multidão, sobretudo a imensa multidão jovem da frente,, explodiu numa lava de alegria.
Preâmbulo segundo: PJ Harvey também não dá concertos. Dá refinados espetáculos de teatro elétrico pós-grunge para adultos requintados - mas esteve cheio de juventude a raiar.
Preâmbulo terceiro: Mitski deu o melhor concerto do 1.º dia deste Primavera. Alguém quer contestar?
Mas agora, isto: parece que hoje, sexta-feira, o dia da cinemática dramática Lana Del Rey, (23.15 horas, Palco Porto) vai ter mesmo mau tempo - coriscos, faíscas, vai chover, vai trovejar. O Fábio de Esmoriz, que acabou de conhecer a Sara e a Mara de Madrid e nunca mais as largou, explica tudo.
Que bonito é o triângulo da amizade
Sara e Mara, madrilenhas, 20 e 21 anos, vivazes, enamoradas, encantadas com o Porto onde tinham aterrado vindas no primeiro voo da Vueling das 7 da manhã de quinta-feira, não paravam de rir da cara do Fábio. Tinham acabado de o conhecer.
O Fábio veio sozinho ao primeiro dia do Primavera - “foi o meu mano, o Ruben, à última hora cortou-se, ficou sem graveto para o bilhete”, disse ele a encolher os ombros num aparte - e conheceu a Sara e a Mara num dos bares do festival quando tentou fazer-se a uma delas. Desistiu rapidamente quando percebeu que elas não eram do campeonato dele. “Elas jogam na mesma liga, mano, tás a ver?”. Mas como elas lhe acharam piada e se deixaram comover com o ar de "perrito sin dueño” que ele pôs quando a Mara, que é mais dura do que a Sara, a Sara é soft, lhe disse ao fim de 30 segundos de paleio “nos gustan las mujeres, hombre"!, resolveram as duas adoptá-lo, pagavam-lhe finos sem fim, e a partir dali, como se estivessem no “Verão Azul” dos sete e do Chanquete, ficaram os melhores amigos para sempre - ou pelo menos ate ao fim do festival, que só vai terminar no sábado e até sábado ainda falta uma eternidade.
Elas riam-se porque o Fábio, um pintarolas de Esmoriz de 17 anos que umas vezes parecia ter 27 e outras parecia ter só seis, mas é “guapo, guapíssimo”, dizem as duas, continuava incrédulo a olhar para o telemóvel, boca escancarada, cantos caídos, olhos de emoji com cachoeira, a desengolir palavrões.
“Fo**-**!”, repetia o Fábio sem parar, os bofes todos para fora, enquanto fazia com o braço todo estirado para trás o gesto fingido de quem ia atirar o telemóvel a voar pelo ar.
“Mas vai mesmo chover outra vez no Primavera?!”, diz ele de seguida quando se acalmou. “A sério? Fo**-**!”. E depois de o repetir três ou treze vezes, porque amuou, não disse mais aquele palavrão transitivo e intransitivo ou pronominal que é de longe o mais popular aqui no Porto. Talvez tenha parado porque elas as duas, mas mais a Mara do que a Sara, não paravam de o imitir, repetindo-o em voz grossa sem parar, mas a mudar o “s” por um “x” muito carregado, o que lhes dava um ar muito cómico, como se praguejassem como em VIseu, enquanto o Fabio fingia que não lhes achava piada nenhuma, mas achava, claro está.
O boletim é sério: chuva, relâmpagos, trovoada
O Fábio lia agora no telemóvel o boletim completo do Instituto Português do Mar e da Atmosfera para esta sexta-feira no Porto e enumerava as calamidades previstas, isto enquanto a Sara e a Mara mordiam os lábios para tentar parar de rir.
Antes disso, o Fábio já explicara que tinha ficado traumatizado no ano passado, o ano do Primavera diluviano em que choveu que deus a deu.
Fora ali parar, nessa noite de 2023, arrastado por um amigo mais velho, o Flávio, um fanático do Kendrick Lamar que só lhe dizia “que rimas, bro, que rimas, vais ver, um senhor!”, semanas seguidas a azucriná-lo, “o Kendrick, bro, o Kendricrik, é o maior, é o melhor, é o verdadeiro intelectual do hip-hop, bro!” -, mas ele, o Fábio que se estreava ali no Primavera, foi tão brutalmente batizado com a chuva que caiu inclementemente desde que entrou até que saiu, que depois disso, ele que andou “sete horas seguidinhas encharcado que nem um cão, não tás a ver, até tremia dos ossos, mano!”, o Fábio que herdou “uma bronquitezita” da mãe e que com aquela molhada se viu “todo esticado três dias de cama a tossir como um cão geladinho de febre”, jurou que depois disso, “música à chuva, mano, à chuva nunca mais!”.
Agora sim, o Fábio lê o boletim
Claramente mais calmo, quase sério, ou nem tanto porque logo depois vai parecer outra vez um desenho animado exaltado, os olhos brancos como bolas de golfe a saltar, o Fábio lê colado no telemóvel. Lê tudo de enfiada, as vírgulas entupidas de “ai”, ai-ai, ai-mano-ai!”. Diz: “Olha, o alerta tem triângulo, tá bonito, tá. Começa tudo a cair à tarde. Diz a meteorologia: condições adversas, aviso de chuva intensa, previsão para as 19 horas, sexta-feira, sete de junho. Aviso de trovoada intensa, aviso de chuva moderada, ah, moderada, bom, se é moderada… Deixa ver. Tem cinco alertas. Ai. Deixa abrir. Aviso de chuva intensa, então já é outra vez intensa?!, então?!, vamos lá ver, ” - e a Sara e a Mara, que estavam as duas à frente dele a bebericar a cerveja aos golinhos, mas que se foram chegando a ele com a repetição dos ais e agora se colam também ao telemóvel, as cabeças confusas como traças a cabecear na luz, não parecem perceber nada.
“Entonces, hombre, cómo es?”, diz a Mara quase a enfiar a cara no ecrã, “llueve o no llueve?”. O Fábio olha muito seco para ela, afasta de repente o telemóvel, e diz-lhe como se fosse o desenho de um lobo mau: “Pois llueve! E llueve que não é pouco! Não estás a ver?”. E continua: “Diz gravidade severa. Severa! Ameaça significativa à vida e à propriedade! Não acreditas? Tá aqu!. O teu telemóvel também deve dizer!”.
A Mara estanca, põe-se toda séria e branca, a Sara também, os copos da cerveja parados a meio caminho no ar.
A Sara abre o telemóvel, demora-se porque só tem uma mão, pousa a cerveja no chão, o silêncio é de cortar à faca - ou nem tanto, eles estão os três ali a meio caminho entre a tenda da restauração e o início da multidão apinhada na plateia do palco Porto que desatou de repetente a guinchar porque entretanto a SZA entrou e o estrondo é ensurdecedor.
Eles estranham. Parecem de repetente dar conta de onde estão, tão embutidos que estavam na leitura do boletim do Fábio.
E a Sara diz depois só isto, já a esticar o olhar para o ecrã gigante da SZA que está a latejar de roxos e carmins: “Joder…”.
E os três ficam a olhar-se mais um instante, ninguém se mexe, congelam-se como os cowboys naquele imediato momento dos duelos crepusculares antes do primeiro sacar da pistola e disparar.
O Fábio é o primeiro a desengatilhar. Diz a raiar: ”Pois com chuva já não venho!”. Elas continuam paradas.
Saca a Sara: “É só chuva, hombre! Não mata!”, e levanta o copo no ar.
O Fábio estremece as pernas. Dispara outra vez: “Pois não mata mas mói”.
Elas não percebem a rajada: “Qué?”.
Ele desfecha outra vez: “Mói! Mói e molha!”.
Elas: “Qué??”
Ele: “Mói! Molha! Mói!. Mói tudo, fico todo moído, ó minha mãe!”
Elas: …
Ele: …
A Mara: “Vens num escafandro! A gente arranja-te um!”, e abre muito os olhos, parada mas prestes a explodir a rir.
A Sara:; “Escafandro!”
A Mara: “Escafandro!”
O Fábio (depois de cinco segundos a cerrar os olhos como Clint Eastwood raivoso a varar): “Ponto! Venho de escafandro!”
E depois: “Mas vocês pagam os finos!”.
Sara e Mara: “Finos!”
Os três brindam no ar, risos estrelejam pelo ar. “Finos! Finos! Fo**-**!”
E depois num mesmo ímpeto, os três de repente rompantes, os três como se fossem um só, como relâmpagos ou como aranhas, lançam as pernas, abrem os braços, as cabeças a bambolear, a Sara perde o copo, ou foi a Mara?, o copo cai em câmara lenta, a espuma estoura no chão, e eles desatam a correr, agora parecem galgos ou parecem jóqueis a grimpar, e desaparecem cheios de riso no bramido da multidão.