Violações: "Normalmente os agressores nestes crimes são pessoas integradas socialmente"
A denúncia e as condenações no caso de violação de Gisèle Pelicot, em França, pode encorajar outras vítimas de abuso a denunciarem as suas situações, analisam especialistas. Apesar de não ser possível traçar um perfil comum dos agressores, muitos estão "integrados socialmente" e têm algum poder sobre o agredido.
Corpo do artigo
"Um testemunho como aquele de Pelicot muitas vezes é importante para algumas vítimas. Importantes não apenas para perceberem que o caso delas não é único – e, portanto, retira um bocadinho a ideia de que só aconteceu com elas daquela forma –, mas também para demonstrar a necessidade de denunciar as situações para que se possa tentar fazer justiça da melhor forma possível", diz ao JN Carla Ferreira, assessora técnica da direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). "Este movimento tem este efeito depois de ter mais vítimas a pedir ajuda e a desocultar as suas situações", relata.
"Obviamente que isso é uma forma de motivar as vítimas para apresentarem queixa, porque percebem, por um lado, que apresentar queixa pode resolver o problema, por fim ao problema, e, em segundo lugar, porque compreendem que não fica na vala comum do esquecimento, mas que o assunto tem contrarresposta", afirma Carlos Alberto Poiares, vice-reitor da Universidade Lusófona e especialista em Psicologia Criminal.
"Isto pode ajudar, pode contribuir muito para que diminuam as cifras negras de casos de violação", destaca o investigador. "Por exemplo, a violação dentro da relação conjugal, que está prevista na lei, e que muitas vítimas não têm a noção que isso é crime e outras têm a noção mas estão convencidas que não vai acontecer nada", acrescenta.
"Quando falamos aqui das relações sexuais mantidas entre casais, por exemplo, e que não são totalmente desejadas por uma das partes, as pessoas nem sempre veem isto como sendo uma violação ou como sendo um crime sexual, porque acham que faz parte aqui de alguma forma dos deveres de uma relação de intimidade", ressalta Ferreira. "E depois também, muitas vezes, se tivermos famílias que, por exemplo, conhecendo a situação, não são apoiantes das vítimas, não as ajudam, não pedem ajuda, não denunciam as pessoas agressoras, não empoderam as vítimas, pode ser mais complicado que as situações sejam desocultadas", frisa.
A integrante da APAV declara que "não há um perfil que se possa dizer que é universal de uma pessoa agressora". "Normalmente os agressores nestes crimes são integrados socialmente, têm uma profissão, às vezes até empregos considerados de alto nível, têm uma família e outras atividades. Não são comumente pessoas isoladas. Normalmente movimentam-se relativamente próximo da vítima", salienta.
Poiares refere que abusadores sexuais "são pessoas que normalmente têm um ascendente sobre a vítima, conseguem manipular a vítima a ponto desta se sentir culpada e corresponsável pelo que houve". "São indivíduos normalmente que com uma sexualidade muito insatisfatória. Há relatos de pessoas que dizem que violaram por receio do seu próprio desempenho sexual. Portanto, há vários tipos de situações", incluindo pessoas que "só conseguem atingir o prazer quando há um ato abusivo".
Abusos dentro da família
Para além de casos de abuso e violação no casamento, há ocorrências com menores neste ambiente do lar. "Contra as crianças, de facto, a maior parte das situações acontecem dentro da família porque precisamente quem pratica estes atos é alguém que tem um ascendente, um poder relativamente à criança, que é vítima", realça Ferreira.
"Ao contrário do que muitas vezes se diz, a casa e a família não são apenas o sítio de segurança das pessoas. Por vezes são lugares horríveis onde estas coisas acontecem", afirma o vice-reitor da Universidade Lusófona. "[A vítima] receia ser castigada ou por estar a mentir ou porque fez alguma coisa que não devia ter feito, como se a culpa fosse da criança e não do adulto agressor", destaca.
"É muito importante trabalhar na prevenção desde muito cedo, explicando às pessoas, em particular desde a infância, de que não têm que manter contacto sexual com ninguém, se não for essa a sua vontade, independentemente das circunstâncias, e que isso, se acontecer, não é culpa delas", diz a assessora da APAV. É preciso "investir na prevenção, sem dúvida, mas também investir na sensibilização das comunidades, para que primeiro se tornem mais intolerantes à violência e saibam agir se souberam de alguma situação e segundo também saibam acolher as vítimas que possam pedir ajuda", completa.