Desporto

No país do Mundial III

Souq waqif Inês Cardoso/JN

Não há datas consensuais, mas o "Souq Waqif" terá séculos como centro de trocas comerciais. Já não é ponto de cruzamento de beduínos, mas um emaranhado colorido de lojas de artesanato, souvenirs e antiguidades, restaurantes e cheiros intensos de especiarias, quadros e fotografias do omnipresente emir do Catar. Há centenas de bandeiras de todo o mundo a decorar as ruas deste famoso mercado, peças oficiais do Mundial, grupos com camisolas de diferentes países que comprovam já ter começado a chegada de adeptos.

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Numa esplanada ampla, um lenço com a bandeira portuguesa denuncia a origem de Maria P. e duas amigas. Não estão em turismo, vivem ali e disparam de imediato quando se apercebem da chegada de jornalistas: "Ainda bem que vêm ver, porque tem sido dita muita coisa por quem nunca cá pôs os pés ".

Maria vive no Catar há 11 anos e considera uma "hipocrisia" o ataque ocidental ao país. Não que não haja problemas, que os 40 minutos de conversa se encarregarão de abordar. Mas alega haver um caminho de abertura percorrido na última década. E exemplifica. Para trabalhar no Catar é preciso um "sponsor", uma espécie de tutor responsável pelo trabalhador. "Há dez anos tiravam o passaporte e a pessoa só saía se o sponsor deixasse. Hoje isso acabou."

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Em dez anos construiu-se o que noutros países demoraria décadas. E essa avalanche teve um preço, mas também vantagens sociais e económicas. "Há verdades que são feias aqui", admite Maria, percorrendo temas como os direitos das mulheres e dos homossexuais. "Devemos lutar pelos princípios todos os dias, mas esse é um caminho que demora." Fala das amigas cataris com carreiras, das escolhas individuais, das linhas telefónicas e albergues criados para mulheres reprimidas. Ou das mudanças na lei laboral. Foi o Mundial de futebol que obrigou a essa mudança, assegura. E a mudança será para continuar? "Inshallah", que se pode traduzir por "se deus quiser", porque num país islâmico a vontade dos homens confunde-se com a divina.

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A poucos metros, os cânticos vindos da Mesquita Fanar, que se destaca pela sua torre em espiral, sobrepõem-se à azáfama do mercado. Cinco vezes ao dia a chamada à oração a partir do minarete atrai de forma magnética o olhar dos turistas.

Adam, "o primeiro homem", recebe quem entra no Centro Cultural Islâmico onde se situa a mesquita com hospitalidade e o tradicional chá. A contar com a torrente de visitantes durante o Mundial, em novembro e dezembro o centro promove sessões em inglês e espanhol para quem quer conhecer a cultura catari. Fora do horário Adam mostra igual disponibilidade e começa por mostrar a história do país sintetizada em meia dúzia de painéis pintados num dos espaços de acolhimento.

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Na ala das mulheres, é colocado o "hijab" a quem chega para uma visita. Numa situação normal, as mulheres seguem sempre o seu caminho e rezam separadas dos homens. Para visitantes não há rigor e a abertura na mesquita chega a ser desarmante. "Aprendizes podem entrar com os homens, sem problema", assegura Adam, ao mesmo tempo que vai explicando as cinco orações diárias, determinadas pelo movimento do sol, e os respetivos horários inscritos num quadro electrónico.

Fora da mesquita o cair da noite é sinónimo de ruas cada vez mais cheias. Por causa do calor, no Catar vive-se muito à noite. A corniche (marginal de sete quilómetros) está vedada ao trânsito e os relvados em volta enchem-se de grupos que tiram fotografias nos mil e um "spots" preparados com palavras como welcome, together, friends. Há um orgulho evidente com o Mundial. Uma excitação à flor da pele. Dias mediáticos, de prosperidade. Dias de agradecer. "Alhamdulilallah."

Inês Cardoso