Mesmo para quem não é amante de futebol, é impossível a imagem não atrair o olhar: uma família local passeia pelo porto de Doha e entre os três adultos com trajes tradicionais estão duas crianças, uma com o equipamento de Ronaldo e outra com o de Messi. Faltam nove dias para o primeiro Mundial organizado por um país árabe e o futebol já tomou conta das ruas. Prevê-se que o evento atraia, em visitantes, o equivalente a 60% da população total do Catar.
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O porto acaba de abrir, como muitas das infraestruturas construídas para o evento. Antes os navios não paravam na capital, mas noutro dos oito distritos em que o país está dividido. A via principal que liga as zonas antiga e nova da cidade, num total de sete quilómetros, está fechada. Só autocarros e carros autorizados circulam e veem-se muitos pontos de controlo. Máquinas fotográficas profissionais e câmaras de filmar precisam de autorização em muitos espaços públicos. Excursões são previamente autorizadas, com restrições na circulação pedonal. E sente-se o olhar permanente de seguranças.
Pedro é guia turístico, de origem carioca mas fora do Brasil desde os 7 anos. Já viveu em Cascais e em Londres, mas está há 14 anos no Médio Oriente, a maioria dos quais no Dubai. Vive em Doha há um ano e meio e descreve com entusiasmo um Catar idílico saído dos manuais do regime: "As regras favorecem um clima seguro, é um país interessante porque toda a população vive muito em paz".
É provável que a descrição até seja real para a generalidade dos catari, mas estes representam apenas 15% da população. Os restantes 85% são uma miscelânea de nacionalidades, alguns em funções qualificadas mas a maioria mão de obra que nos últimos 12 anos ergueu os estádios, hotéis e serviços públicos que agora são exibidos ao mundo com orgulho.
O calor atinge-nos com uma agressividade sufocante, apesar de estarmos a entrar no inverno, e é difícil imaginar o trabalho 60 horas semanais nas obras, como permite a legislação laboral local. No verão as temperaturas atingem 50 graus e em teoria é proibido trabalho pesado entre as 10 e as 16 horas. Muitas das mortes denunciadas pelas ONG e oficialmente inexistentes deveram-se a paragens cardiorrespiratórias, causadas por exaustão.
Os dias de Pedro são em larga medida passados a bordo de um "dhow", o barco típico antes usado para apanhar ostras e agora convertido em massa para passeios turísticos. Primeira música a bordo? O hino do Mundial, claro. O percurso inicia-se com vista para o estádio 974, inspirado no comércio marítimo do Catar e considerado um dos que tem design mais inovador. Além de ser o código internacional de telefone do país, 974 é o número de contentores de transporte usados na construção do estádio, que será completamente desmontado após o Mundial.
Do "dhow" avistam-se as principais áreas da cidade, os prédios de West Bay, o arco 56, que simboliza as redes de apanha de ostras, e já mais longe do centro a Pérola, a famosa ilha artificial onde viver é um luxo. Arrendar um estúdio custa dois a três mil euros e a compra entre 300 e 400 mil. A ilha é constituída por vários bairros de influências diferentes (um dos mais famosos é a Veneza de Doha). Vistos do céu, os sucessivos bairros formam uma ostra e a pérola é na verdade um luxuoso hotel ao centro.
Muitos dos moradores da Pérola são estrangeiros. Como quase tudo o que comemos ou vemos no Catar é importado. O país não produz muita coisa, mas também não precisa porque o que tem é altamente lucrativo - gás e petróleo. Também alguns hábitos começam a ser importados e estrangeiros já encontram com facilidade álcool em hotéis e restaurantes internacionais. Para os residentes a compra de álcool, apenas para consumo em casa, exige uma licença específica. A religião está acima da lei e a lei é altamente influenciada pela religião.