Justiça

Matou mãe do filho um dia após ser julgado por violência doméstica

Casal viveu junto 18 anos apesar da violência DR

Vítima não foi protegida pelo Ministério Público, nem pela GNR e tão pouco pelos médicos que a assistiram. Peritos da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica criticam atuação de todas as entidades envolvidas no caso

O Ministério Público (MP) nunca sentiu necessidade de impor medidas de coação duras a um suspeito de violência doméstica e a GNR entendeu, em quatro avaliações, não existir risco elevado de a vítima voltar a ser agredida. Também os médicos não efetuaram diligências para proteger uma mulher, de 38 anos, violentamente agredida quando estava na cama, abraçada ao filho de 9 anos.

Perante esta inoperância, José Fernandes, 51 anos, teve total liberdade para, no dia seguinte ao fim do julgamento por violência doméstica, matar a tiro a ex-companheira Paula Alves e suicidar-se ao volante de um carro que conduziu para uma ribanceira, em Oliveira de Frades, com o filho de ambos sentado no lugar do pendura.

Apesar de não ter sido defendido pelo MP e pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ), o menino foi o único sobrevivente num processo que falhou em tudo. "Todos agiram de forma isolada, em reação a acontecimentos que foram chegando ao seu conhecimento, sem que tivesse havido transmissão de informação, diálogo e articulação, impossibilitando-os de ter uma visão holística e, portanto, um efetivo conhecimento dos problemas que importava resolver e de definirem uma estratégia informada, coerente e eficaz de intervenção", realça a Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídios em Violência Doméstica (EARHVD).

Queria incendiar carro com mulher no interior

No seu último relatório, publicado na semana passada, o grupo de trabalho criado pelo Governo e liderado pelo procurador jubilado Rui do Carmo, não poupa nas críticas a todas as entidades envolvidas num caso que remonta a 3 de março de 2020. Nesse dia, José Fernandes dirigiu-se ao carro no qual a antiga companheira esperava que o filho lhe fosse entregue pelo pai. Sem aviso prévio, baleou-a duas vezes, regou o automóvel com gasolina, mas não teve tempo de acender o fósforo. "Tudo indica que não inflamou o combustível por ter aparecido o filho", refere a acusação do MP.

Depois, o técnico de manutenção sentou a criança no Fiat Punto, arrancou a grande velocidade do local do crime e, com poucos quilómetros percorridos, avisou que ia causar um acidente para que ambos morressem. A queda pela ravina foi violenta e provocou a morte do condutor assassino. O menino, porém, sobreviveu com ferimentos ligeiros e um grande trauma psicológico.

A mais baixa das medidas de coação

O homicídio ocorreu no dia imediatamente seguinte ao julgamento em que José Fernandes respondeu pelo crime de violência doméstica sobre Paula Alves. No final da sessão, Fernandes foi informado que a sentença seria lida 14 dias depois e saiu sem qualquer restrição do tribunal.

Estava apenas sujeito a termo de identidade e residência (TIR), a mais baixa das medidas de coação e a única que lhe foi aplicada desde que, em dezembro de 2019, agrediu a mulher com quem manteve um relacionamento durante 19 anos. O ataque envolveu agressões e cabelos arrancados com a vítima deitada na cama, abraçada ao filho, e levou, pela primeira vez, a mulher a denunciar a violência doméstica que havia sofrido nos oito anos anteriores.

Nos meses seguintes à denúncia, Paula Alves contou às autoridades que sentia "pânico e medo" porque o antigo companheiro continuava a telefonar-lhe constantemente, perguntava informações aos seus colegas de trabalho e perseguia-a por diversos locais. Confessou recear pela sua vida e pediu que José Fernandes ficasse impedido de a contactar.

O MP determinou que a GNR procedesse ao "patrulhamento policial constante e possível da residência ou dos locais onde a ofendida poderia ser encontrada". Também ordenou a troca de números de telefone entre Paula Alves e a Guarda, para "permitir uma intervenção rápida em momento de agressão" e aceitou que a vítima usasse um aparelho de teleassistência.

Contudo, manteve o TIR como única medida de coação aplicada ao agressor. Uma decisão sustentada em três fichas de avaliação de risco que nunca consideraram elevada a probabilidade de Paula ser atacada uma vez mais. Nem quando o juiz requereu nova avaliação de risco pouco antes do julgamento a análise foi alterada.

"Na avaliação do risco não foi tomada em consideração toda a informação existente em cada momento, mesmo aquela que já constava das avaliações de risco anteriores, os fatores assinalados foram-se alterando de acordo com as oscilações na estabilidade e na perceção do risco pela vítima, única fonte de informação. Ou seja, foi cumprido um procedimento burocrático, mas não efetuada uma avaliação de risco com o comprometimento na procura ativa de informação com origem em diversas fontes", alega a EARHVD.

Para a equipa constituída por entidades de diferentes áreas, também os médicos do centro de saúde e hospital onde a família foi assistida ao longo dos anos, inclusive a lesões causadas por violência doméstica, falharam ao não efetuar "qualquer comunicação à Equipa para a Prevenção da Violência em Adultos, resposta estruturada e formalizada nos serviços de saúde". "A equipa de saúde familiar dos cuidados de saúde primários nunca efetuou qualquer diligência tendo em vista proporcionar apoio e proteção a A [Paula Alves] ou qualquer comunicação a entidades que devessem desenvolver a resposta à situação em que esta se encontrava", frisa

Criança desprotegida

Segundo a EARHVD, também a situação do menino em perigo só foi comunicada ao Núcleo Hospitalar de Apoio a Crianças e Jovens em Risco apenas quando aquele "foi vítima da tentativa de homicídio, não tendo até então sido sinalizada a qualquer entidade de 1.ª linha ou CPCJ". "E nunca foi efetuada uma avaliação global e das relações existentes nesta família, que teria permitido delinear uma intervenção que procurasse evitar o agravamento da situação", acrescentam os especialistas.

"Até à data do homicídio da mãe e da tentativa de homicídio de que esta criança foi vítima, a ação desenvolvida pela CPCJ fora insuficiente e inadequada para alcançar o objetivo de promover os seus direitos e pôr termo à situação que estava a afetar a sua saúde, segurança, educação e desenvolvimento", lê-se, igualmente, no relatório.