Estudo sobre 1205 descendentes de mulheres violentadas concluiu que os que assistem a agressões têm mais perturbações mentais e cometem mais crimes.
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Os descendentes das vítimas de violência doméstica reprovam, ao longo do seu percurso escolar, cinco vezes mais do que as restantes crianças e adolescentes. A conclusão é de um estudo levado a cabo por dois investigadores e docentes universitários, que mostra também que os "filhos da violência doméstica" têm mais perturbações mentais e cometem mais crimes em contexto escolar do que os restantes jovens.
"Percebe-se que, em todas as variáveis analisadas, os índices verificados nos filhos das vítimas de violência doméstica são sempre mais elevados. A violência doméstica é uma marca que fica para sempre", constata o autor do trabalho académico Miguel Rodrigues.
Já o psicólogo forense e consultor científico da investigação, Mauro Paulino, espera que os dados ontem anunciados "mostrem, de uma vez por todas, que não é necessário o progenitor agredir uma criança para deixar marcas profundas no seu desenvolvimento".
A amostra do estudo é composta por 1205 filhos de 1010 mulheres que, em 2014, 2015 e 2016, apresentaram queixa por violência doméstica. Crianças e mães voltaram a ser contactadas entre 2020 e este ano, no âmbito da tese de doutoramento que Miguel Rodrigues está a concluir, e as suas respostas não deixam dúvidas.
Em 65% dos casos, os "filhos da violência doméstica" reprovaram, pelo menos, uma vez durante o percurso escolar, havendo alguns que reprovaram mais de três vezes. "Há jovens de 20 anos que continuam no ensino secundário", realça Miguel Rodrigues.
De resto, 90% das retenções ocorreram após o início da violência doméstica.
Mais vulneráveis
Os dados recolhidos pelo investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares em Educação e Desenvolvimento, da Universidade Lusófona, também revelam que os "filhos da violência doméstica" têm duas vezes mais perturbações mentais e admitem ser mais tristes, nervosos e sentir mais medo do que a generalidade de crianças e jovens inquiridos noutras investigações, nacionais e internacionais.
Os jovens confessaram ainda consumir mais álcool, drogas e medicamentos. Também jogam mais a dinheiro na internet.
No estudo, considerado por Miguel Rodrigues como "o maior realizado em Portugal" sobre violência doméstica, constata-se, de igual modo, que 17% dos inquiridos já cometeram um crime em ambiente escolar. Destes, 85% fizeram-no só após vivenciarem momentos traumáticos no seio familiar. "Corresponde a um crime por cada seis alunos. É uma média 11 vezes superior", frisa a investigação.
"Não podemos dizer que uma criança que assistiu a casos de violência doméstica será um agressor, mas tem um conjunto de vulnerabilidades acrescidas e necessita de ser intervencionado o mais rapidamente possível", defende Mauro Paulino.
Opinião
Interesse da criança não é protegido
"O superior interesse da criança é um chavão bonito, mas não está em cima da mesa aquando da tomada das decisões judiciais". A crítica é de Mauro Paulino, que dá como exemplo a obrigatoriedade de um menor viver, mesmo que a meio tempo, na casa do progenitor suspeito ou condenado por violência doméstica. "Estamos a obrigar uma criança a conviver com uma figura que lhe cria ansiedade", justifica o também docente da Universidade de Coimbra.
"Há sempre um impacto negativo nas crianças em todos os casos de violência doméstica", reforça Miguel Rodrigues, autor do estudo "Filhos da Violência Doméstica".
Dados
Violência
Segundo Miguel Rodrigues, 16% dos jovens inquiridos identificaram-se como agressores em contexto de violência no namoro. "E 22% identificaram-se com o papel de vítima", refere.
Perdão
O estudo evidencia que 45% das mulheres abandonaram o agressor logo após a apresentação da denúncia de violência doméstica. Porém, seis anos depois, 75% destas vítimas tinham reatado o relacionamento.
País representado
A amostra do estudo contempla mães e filhos, entre os 15 e os 22 anos, de todas as regiões do país, que responderam a inquéritos.