Praça da Liberdade

Os três momentos de Marcelo Rebelo de Sousa

O encantamento inicial

As primeiras recordações que tenho de Marcelo Rebelo de Sousa remontam aos anos 80, onde, como candidato à Câmara Municipal de Lisboa, decidiu mergulhar no Tejo para lançar a sua campanha. De seguida, foi "o Exame", programa da TSF onde Marcelo dava notas aos atores políticos. Confesso que, aliado ao episódio da "vichyssoise", não tinha uma imagem abonatória de um Marcelo que chegou a presidente do PSD. E esse período não ajudou a que o balanço fosse positivo. Porém Marcelo, torna-se a figura mediática na TVI e começamos a compreender a capacidade das TV porem comentadores no Palácio de Belém. É neste contexto que Marcelo Rebelo de Sousa é eleito presidente da República. E a verdade é que beneficia, de forma significativa, do ambiente herdado dos dez anos anteriores em Belém.

Cavaco Silva cultivara uma figura austera, distante e quase alheada do quotidiano das pessoas - um presidente enclausurado na sua torre de marfim. A chegada de Marcelo representou exatamente o contrário: uma lufada de ar fresco. As janelas e as portas do Palácio de Belém abriram-se, e os portugueses redescobriram que tinham um presidente que se deixava ver, ouvir e tocar. A sua capacidade de comunicação, associada a sucessivas quebras deliberadas do protocolo de Estado, gerou índices de popularidade inéditos. Marcelo tornou-se o presidente popular, o presidente das massas, das selfies e da omnipresença mediática. Os incêndios de 2017 reforçaram esta imagem - o presidente dos afetos, que conforta as populações, abraça, chora e partilha o luto. Mas esse afeto não significou ausência de exigência política. Enquanto consolava comunidades devastadas pelos incêndios, pressionava o Governo, exigia respostas e acabaria por provocar a demissão de governantes. Marcelo demonstrou aí a outra face da sua presidência: emocional no gesto, firme na intervenção política.

A normalização marcelista

A estabilidade política tornou-se o centro da sua atuação. Marcelo assumiu-se como o político "porreiro" da cena mediática: aquele que, pela manhã, negocia discretamente entendimentos entre partidos para viabilizar o Orçamento do Estado e, ao final do dia, é visto a comer um gelado enquanto passeia descontraidamente pelas ruas de Lisboa. Esta versatilidade reforçou a aura do presidente próximo, informal, quase omnipresente - e manteve a popularidade em níveis estratosféricos. Mas esse capital mediático começou a revelar um lado menos virtuoso: a exposição transformou-se em hábito, e o hábito em vício. A atenção pública parecia tornar-se uma necessidade permanente, quase uma obsessão. Ao mesmo tempo, os "tiques marcelistas" tornaram-se mais evidentes. A chegada da pandemia de covid-19 foi, nesse sentido, um divisor de águas na tolerância que o país tinha para com o estilo presidencial. Em vez de permanecer no Palácio de Belém e comunicar ao país a partir do centro do poder, optou por um isolamento doméstico, produzindo uma comunicação atípica, quase pós-apocalíptica, que gerou mais inquietação do que confiança. Esse episódio marcou o início de um desgaste subtil, mas persistente. Politicamente, 2021 termina com um gesto que parece contradizer todo o discurso de estabilidade que o próprio Marcelo cultivara. Após o chumbo do Orçamento do Estado, decidiu dissolver a Assembleia da República e pôr termo ao segundo Governo de António Costa. O paradoxo é evidente: depois de anos a apresentar-se como construtor de pontes e defensor do entendimento político, escolhe precipitar eleições num momento em que, apesar da tensão, poderia ainda haver margem para reconstruir um acordo. Foi um ato constitucionalmente legítimo, mas politicamente ambíguo: tão coerente com a sua leitura da situação quanto incoerente com a imagem que ele próprio edificara.

A saturação final

A maioria absoluta conquistada pelo terceiro Governo de António Costa trouxe consigo um inesperado surto de vitalidade presidencial. Marcelo Rebelo de Sousa pareceu sentir a necessidade de recordar, a todos e a cada momento, a extensão dos poderes constitucionais do presidente da República. Repetia - de forma direta ou subliminar - que nenhuma maioria parlamentar os anulava, que a dissolução estava sempre ao alcance de um gesto, e que um presidente pode demitir, dissolver... e voltar a demitir. Esta insistência tornou-se um traço dominante da sua atuação. Esta deriva acabou por contaminar a própria presidência. Marcelo passou a comentar tudo, em todo o lado - das visitas oficiais às "flash interviews" dos jogos da seleção - exceto, por vezes, aquilo que realmente importava ao país e que deveria ser tratado nos lugares adequados. A natural elasticidade comunicacional foi-se transformando numa hiperexposição desordenada. A sombra de episódios de alegado favorecimento no acesso a cuidados de saúde e a ambiguidade com que se posicionou perante casos de abusos sexuais por membros da Igreja Católica desgastaram a autoridade moral da instituição. Aos poucos, Marcelo deixou que a presidência se confundisse com a sua própria persona, perdendo-se nas suas marcelices - essa mistura de improviso, comentário permanente e aparente infalibilidade discursiva. Chegou ao ponto de ser mais fácil saber o que Marcelo pensava sobre o onze inicial da seleção portuguesa do que compreender a sua leitura sobre as condições de governabilidade de Luís Montenegro. A leveza do comentário ocupou o espaço da ponderação institucional. O presidente celebrou a sua omnipresença, mas pagou o preço: o país começou a ouvir mais Marcelo do que a escutar o presidente da República.

Miguel Ângelo Rodrigues