Marcelo: o presidente dos afetos para quem a exposição se transformou num vício

Marcelo Rebelo de Sousa abriu um novo ciclo, com uma Presidência mais aberta e popular
Foto: José Coelho/Lusa
A menos de três meses de Marcelo Rebelo de Sousa deixar o cargo, os politólogos Viriato Soromenho-Marques e Miguel Ângelo Rodrigues passam em revista uma década em Belém. Do "presidente dos afetos" às "desmesuras de gestos e linguagem", leva três dissoluções do Parlamento no currículo.
Para Viriato Soromenho-Marques, uma década de Marcelo como presidente "deixa um sabor doce a tender para o amargo". O professor da Universidade de Lisboa recordou que "conseguiu afirmar-se através de um estilo genuíno, de proximidade e interesse pelos cidadãos", sem "nunca perder a tendência para a popularidade excessiva".
A seu ver, Marcelo "teve momentos fortes no seu primeiro mandato: uma relação de cooperação efetiva com o Governo da geringonça; uma intervenção de autoridade estabilizadora na mortífera crise dos incêndios florestais de 2017; um propósito nobre e reiterado de acabar com o flagelo dos sem-abrigo".
"Decisões precipitadas"
Já o segundo mandato, que começou em plena pandemia, "inicia um percurso cada vez mais entrópico" do presidente, "marcado por decisões precipitadas, desmesuras de gestos e linguagem, e um excessivo à-vontade na dissolução do Parlamento, conduzindo a eleições antecipadas".
Na segunda dissolução, "não se importou de caucionar a causa indicada por António Costa para sair (o parágrafo da procuradora-geral da República), que não passou de um pretexto para se precipitar para a cadeira de presidente do Conselho Europeu".
Para este professor, "o pior de tudo" tem sido a posição sobre a guerra na Ucrânia. "De alguém com o conhecimento académico e a experiência de Mundo de Marcelo, esperava-se que não trocasse o interesse nacional e o princípio ciceriano do "salus populi suprema lex esto" (que a salvação do povo seja a lei suprema) pela maniqueísta narrativa, forjada em Washington e apurada em Bruxelas, que atira para debaixo do tapete as responsabilidades do "Ocidente alargado", ao longo de 30 anos, que ajudam a explicar grande parte das causas desta guerra", diz Viriato Soromenho-Marques. E "pior ainda: mantém-se cúmplice da atual investida da União Europeia contra uma solução diplomática".
O vício da exposição
Para Miguel Ângelo Rodrigues, vice-presidente da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho, Marcelo beneficiou do ambiente que herdou de Cavaco: "um presidente enclausurado na sua torre de marfim". Foi "uma lufada de ar fresco" e os incêndios de 2017 reforçaram a sua imagem de "presidente dos afetos", mas "firme na intervenção política".
A estabilidade política viria a ser "o centro da sua atuação". Marcelo "assumiu-se como o político porreiro da cena mediática: aquele que, pela manhã, negocia discretamente entendimentos para viabilizar o Orçamento do Estado (OE) e, ao final do dia, é visto a comer um gelado enquanto passeia pelas ruas de Lisboa", nota o politólogo. Ora, "esta versatilidade reforçou a aura do presidente próximo, informal, quase omnipresente, e manteve a popularidade em níveis estratosféricos". Porém, "a exposição transformou-se em hábito, e o hábito em vício. A atenção pública parecia tornar-se uma necessidade permanente, quase uma obsessão".
Após a pandemia ter dado início a "um desgaste subtil, mas persistente", 2021 terminou "com um gesto que parece contradizer todo o discurso de estabilidade que o próprio cultivara": a dissolução do Parlamento perante o chumbo do OE. Já "a maioria absoluta do terceiro governo de Costa trouxe um inesperado surto de vitalidade presidencial", diz o politólogo, lembrando que Marcelo insistia em recordar os seus poderes e "passou a comentar tudo, em todo o lado". E "a natural elasticidade comunicacional foi-se transformando numa hiperexposição desordenada".
Além disso, refere que "a sombra de episódios de alegado favorecimento no acesso a cuidados de saúde [o caso das gémeas] e a ambiguidade com que se posicionou perante casos de abusos sexuais por membros da Igreja Católica desgastaram a autoridade moral da instituição. Aos poucos, Marcelo deixou que a Presidência se confundisse com a sua própria persona". Portanto, "celebrou a sua omnipresença, mas pagou o preço: o país começou a ouvir mais Marcelo do que a escutar o presidente da República".
Leia aqui os comentários completos de Viriato Soromenho-Marques e de Miguel Ângelo Rodrigues, num balanço dos mandatos de Marcelo Rebelo de Sousa feito para o JN.

