Corpo do artigo
Se a raça não tem cor, é o espaço que forja proximidades. O bairro, com rótulo de gueto, veste essa pele. Fecha-se sobre si próprio. É a "nação" dos jovens que não têm nação. Heróis no seu território, relutantes em sair dele. "Africanos" nascidos na terra dos "tugas", que idolatram Amílcar Cabral ou Jesus Cristo.
São traços identitários desta natureza que Cláudia Vaz regista no seu "diário de campo", preparando o doutoramento sobre identidades de jovens da Cova da Moura. Assim mesmo identidades. Múltiplas. Híbridas. Não enquadráveis em modelos, necessariamente redutores.
No início, sentiu-se Indiana Jones, "impregnada de preconceitos e de um medo construído". Lenta e pacientemente, foi conquistando terreno - que é como quem diz a confiança dos jovens -, em parte graças ao apoio da associação Moinho da Juventude. Hoje, está tão à vontade nas ruelas do bairro como na sala de aula.
Em dois anos de investigação no bairro do concelho da Amadora, que vem à memória sempre que se fala em exclusão e criminalidade, a jovem antropóloga descobriu traços ocultos. "Mostrar a Cova da Moura que ninguém vê, a partir de dentro, e desmistificar a ideia de gueto, onde não se entra". Dois objectivos num só, que Cláudia Vaz deseja concretizar na tese, pronta lá para Setembro.
Que Cova da Moura é essa, que "ninguém vê"? É a dos jovens avessos ao meio escolar, cujo quotidiano é a rua. Que detestam os "berdianos", traficantes a quem atribuem a má fama do bairro. Que não se revêem na imagem que os media deles constroem miséria, crime, marginalidade...
Caminho da afirmação
É a Cova da Moura dos jovens do "muito fumo", cultores de um rap tornado consciência crítica. Feito de alertas para consumo interno a morte de amigos, a ilusão de que o tráfico de droga dá estatuto, as gravidezes precoces (ler caixa). Sempre em crioulo, que já não é o de Cabo Verde, ganhou novos vocábulos.
"As figuras públicas criadas pelo bairro não têm uma imagem positiva - um futebolista, um músico famoso", anota a investigadora.
"Bom carro, bom som, boas 'damas', roupa de marca" - são esses os caminhos da desejada afirmação social. O orgulho de pertença à comunidade até já se exprime na moda, através da marca "K. M.", de bonés e t-shirts.