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C inco indivíduos, entre os quais uma mulher, estão acusados pelo Ministério Público da autoria e participação num homicídio que envolveu a decapitação da vítima, após o que corpo foi lançado num recipiente com ácido. O cenário é o de um ajuste de contas, onde se misturam o controlo de mercados de tráfico de droga, dívidas e extorsão, um mundo negro onde se juntam interesses portugueses, espanhóis e turcos.
O caso, complexo e de elevada perigosidade, foi investigado pela Direcção Central de Combate ao Banditismo (DCCB), da PJ, e a acusação foi elaborada pelo Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa, que está pronta e foi enviada para o Tribunal da Boa Hora, em Lisboa. O julgamento, no entanto, ainda não está agendado, se bem que vá permitir trazer ao grande público uma realidade normalmente escondida e envolta em mistério e medo.
Os nomes dos arguidos que surgem na nossa edição são fictícios, e apenas os da vítima, Hary Neto, e o de um turco, Yilmaz Kiraz, que cumpre pena por tráfico e estava associado a um dos acusados, correspondem à realidade.
O caso começou em 2003 quando António foi libertado da cadeia, após esgotado o prazo da prisão preventiva. Tinha sido detido em flagrante em 2001 com o turco Yilmaz Kiraz, pela Direcção Central de Investigação do Tráfico de Estupefacientes (DCITE), da PJ, durante uma entrega de 1 kg de heroína. António era, no entanto, credor de mais de 500 mil euros e precisava de pagar a quem lhe fornecia a droga, sob pena de a sua própria segurança ser posta em causa. Foi estabelecido contacto com dois indivíduos, João e Humberto, para execução das cobranças e o primeiro alvo foi um antigo traficante, de alcunha o "Fadista", que foi sequestrado para pagar uma dívida de 10 mil euros, já em 2004.
O segundo alvo foi Hary Neto, atraído para uma suposta conversa com António e João para o bairro da Curraleira, em Lisboa, na tarde do dia 25 de Julho, desse ano. Daí, os três seguiram para a zona de Santarém no carro de António, um Mazda MX 3, tendo Ary deixado na Curraleira o seu próprio veículo, um BMW cabriolet. António conduzia, Hary ia ao seu lado e atrás seguia João. Quando o carro se imobilizou, este último terá puxado de uma pistola de 9 mm, disparando à queima-roupa na cabeça de Hary.
O corpo foi levado no Mazda, de volta a Lisboa, ainda no mesmo dia, mais concretamente para Massamá, para uma garagem que fora alugada por Humberto. Foi ali que a cabeça de Hary foi separada do resto do corpo, após o que o cadáver foi metido dentro de um bidon, tendo-lhe sido lançado para cima ácido clorídrico, ficando assim durante vários dias, para reduzir as hipóteses de vir a ser reconhecido.
No entretanto, a companheira de Hary tinha dado conta do seu desaparecimento à Polícia Judiciária, suspeitando de crime, e no dia 12 de Julho, a PJ descobriu o corpo sem cabeça, na sequência de um alerta da PSP, no Cacém, no Bairro de S. Marcos, numa ribanceira.
No mesmo dia, os dois principais suspeitos eram detidos pela DCCB, se bem que também numa associação à queixa-crime que fora apresentada pelo "Fadista". Seguiram-se o Humberto e dois outros indivíduos, entre os quais uma mulher que terá ajudado a fazer desaparecer o corpo sem cabeça de Hary.
O BMW de Hary, no entanto, desapareceu no Bairro da Curraleira, onde ficara estacionado no dia do homicídio. Só já este ano, em Janeiro, seria o "cabriolet" descoberto pela GNR, na zona de Sintra, carbonizado, poucas semanas depois do desencadear da operação policial do caso "Passerelle". Um caso não está associado ao outro, mas poderá ter havido o receio de que operação pudesse levar à libertação de mais informação, tendo em conta a proximidade que havia entre Hary e arguidos do caso "Passerelle".
Quanto ao Mazda MX 3,o carro onde terá ocorrido o homicídio e possibilitaria a recolha de vestígios, nunca foi encontrado.
Turcos, banhadas e a cabeça que continua por descobrir
O cadáver de Hary Neto foi enterrado em 2004, mas sem cabeça, a qual nunca mais foi desde então encontrada. À partida, quem cometeu o crime sabia que essa parte do corpo poderia funcionar como uma forma de a Polícia Judiciária chegar aos autores do homicídio. Com efeito, a informação policial dava conta que que Hary Neto tinha sido abatido com um tiro na cabeça. No entanto, há outras teorias, segundo as quais Hary terá provocado graves prejuízos à estabilidade das redes de tráfico, em particular as de heroína, controladas pelos turcos a partir de Espanha. Yilmaz Kiraz, por exemplo, detido pela DCITE em 2001 juntamente a António, e que residia em Cascais, era tido pela PJ como um representante das redes turcas no nosso país, até pelo facto de ser cunhado de um líder turco, de alcunha o "Paralítico". Yilmaz foi condenado a 13 anos de cadeia e o ano passado foi transferido para a Turquia onde vai cumprir o resto da pena, no entanto, responderia perante o núcleo duro da rede, instalado em Sevilha. Dela fazia também parte um português, de alcunha o "Anão", e que era responsável pela contabilidade. As suspeitas policiais dão conta de que Hary terá praticado vários roubos de droga e dinheiro - as chamadas "banhadas" - e um dos principais prejudicados era António, que terá chegado a estar sequestrado em Sevilha em 2003 ou 2004, na sequência da estada em Portugal de representantes da rede que lhe vinham pedir contas pelas dívidas. Daí que, seja ou não provado em tribunal a culpabilidade de António na morte de Hary, haja informações que dão conta que a cabeça da vítima possa ter sido levada para mostrar que o "enfant terrible" do tráfico de droga estava realmente morto. A verdade é que a morte de Hary continua a marcar a realidade do mundo do tráfico.