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V em-me às mãos um almanaque dos meados do século XIX e delicio-me com a leitura, no chamado "Roteiro", dos nomes de algumas ruas, praças, becos e vielas do Porto desse tempo Rua do Calca Frades, em S. Nicolau; Rua da Prata, no Bonfim; Rua da Senhora do Ferro, na Sé; becos do Pedregulho, na Sé; da Pamparona, na Foz; e da Rosa, em S. Nicolau. Ainda nesta freguesia ficava a Travessa da Estrela. E havia a Rua dos Coutos para as bandas do Campo Alegre; o sítio do Agueto, no Amial; e no Ouro ficava a Calçada do Gás. A Travessa da Donatária era em Cedofeita e a das Feiticeiras ficava no Bonfim. E estas verdadeiras delicias juntem-se, agora, os nomes de algumas vielas: do Galinha, em Massarelos; do Cadavais, na Sé; das Panelas e do Vale das Pegas, ambas em S. Nicolau. Foi desta freguesia também a Rua do Reguinho onde nasceu o celebrado escritor Júlio Dinis. Aproveito para esclarecer uma dúvida que há tempo me foi colocada por um leitor destas crónicas. Perguntava ele se não tinha existido a Rua do Reguinho para os lados da Quinta do Prado, actual Cemitério do Prado do Repouso. Não, não houve. O que aconteceu é que, ainda nos fins do século XIX, às "Hortas do Reimão", para onde as famílias do Porto iam merendar aos domingos, e que ficavam sensivelmente a meio da actual Avenida de Rodrigues de Freitas, se dava também o nome do Reguinho, ao que parece em analogia com algum pequeno curso de água que por ali passava.
Era neste sítio do Reguinho, à beira da estrada para Gondomar, que ficava o conhecido cruzeiro do Senhor dos Aflitos, actualmente no cemitério paroquial do Bonfim. Este padrão era diferente da maioria dos outros que havia espalhados pela cidade. A figura de Cristo não era esculpida na pedra mas sim pintada. Nem por isso deixava de ser objecto de grande veneração, não apenas por parte dos vizinhos, mas também pelos lavradores das redondezas, nomeadamente dos de Campanhã, Valbom e S. Cosme que diariamente por ele passavam quando vinham vender produtos das suas terras aos mercados da cidade e, depois, no regresso a suas casas.
De entre os devotos da vizinhança havia uma que se destacava especialmente a proprietária do célebre Restaurante do Maneta que a si mesma se obrigara a alimentar de azeite a lamparina que, de dia e de noite, mantinha acesa a chama votiva.
Já agora, um breve parêntesis para explicar aquela alcunha de a Maneta. A dona do restaurante chamava-se Maria da Silva Leal. Em 1831 estava noiva mas, no ano seguinte, começa a guerra civil e o namorado é chamado para fazer parte do Exército Libertador. Durante o Cerco foi ferido e ficou sem um braço. No fim da luta apresentou-se à prometida convicto de que ela o ia rejeitar. Mas isso não aconteceu. Casaram e a Maria da Silva Leal passou a ser conhecida pela alcunha com que era denominado o marido.
Este cruzeiro do Senhor dos Aflitos ficava, como acima se refere, na margem da antiga estrada real, numa espécie de encruzilhada onde confluíam a antiga Travessa da Nora e a também já desaparecida Rua da Palma. Foi removido para o cemitério do Bonfim no último quartel do século XIX. Mas mesmo já neste seu refúgio nunca deixou de ser venerado, agora mais especificamente pelos seus antigos vizinhos. Foi o caso, por exemplo, de um ferreiro chamado Manuel Ribeiro que vivia na antiga Rua da Palma. Tinha pelo Senhor dos Aflitos tão profunda devoção que mesmo quando a cruz foi levada do sítio onde ele a conhecera não deixou de lhe dedicar a sua afeição mandando celebrar, por sua conta, uma festa na Igreja do Bonfim e custeando os enfeites com que, durante a festividade, mandou ornar o cruzeiro que já estava no cemitério.
Mas a crónica começou com a evocação de nomes antigos de arruamentos que já desapareceram. Um deles foi exactamente a Rua do Reimão que ia desde o Jardim de S. Lázaro até junto da actual Rua do Freixo. Em 1835, foi-lhe dado o nome de Rua de 29 de Setembro. Chamou-se também Rua do Padrão por causa da capela desta invocação que está à entrada da Rua do Freixo. Em 1877, o nome de 29 de Setembro foi substituído pelo da Rua do Heroísmo, que evoca a valentia com que os liberais se bateram na recontro que eclodiu naquele sítio, exactamente a 29 de Setembro.
Curiosas designações
de antigas ruas do burgo
Uma das mais centrais artérias da cidade que conheceu várias designações foi a actual Rua dos Clérigos. Olhando para ela, e tendo em conta a cidade no tempo da muralha fernandina, não é difícil constatar que, no tempo em que a cerca estava de pé, o espaço hoje ocupado pela rua não passava de um simples caminho rural que corria ao longo do alto muro. Com o derrube da cerca, o antigo caminho rural foi alargo e transformado em calçada e recebeu o nome da padroeira de uma ermida que existia na antiga Praça das Horas, actual Praça da Liberdade, passando a denominar-se Calçada da Natividade. Nos começos do século XIX, uma comissão de mercadores locais tentou por meio de abaixo-assinados que à artéria em causa fosse dado o nome do imortal Garrett. Mas o intento não logrou êxito. Entretanto, foi construída ao cimo da calçada a igreja e a torre dos Clérigos. A calçada passou então a adoptar este nome. E assim esteve até 1860, ano em que o visconde de Gouveia, então governador civil do Porto, tomou a resolução de mudar definitivamente o nome para Rua dos Clérigos. Que mantém.