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Afreguesia dos Mártires não quer morrer, porém teme uma morte anunciada. Tudo porque o Governo já fez saber que vai propor, até ao final do ano, a extinção das freguesias com menos de mil habitantes. A proposta enquadra-se no âmbito da reforma administrativa e deverá ditar, em Lisboa, o desaparecimento das freguesias da Madalena, do Castelo, de Santiago, de Santa Justa, de Sacramento, além da dos Mártires.
É por isso que a Junta de Freguesia dos Mártires já fez saber, pela voz do seu presidente, que tenciona oferecer resistência à medida e que está prevenida para o combate. Não me parece que isto faça muito sentido, ou que essa luta, a ocorrer de facto, possa ter sucesso.
É certo que a freguesia dos Mártires é uma das mais antigas da cidade, e que nela se encontram pontos de referência histórica, cultural e identitária da cidade. Desde os teatros de S. Carlos e de S. Luis, até à Basílica dos Mártires e ao Convento da Boa Hora, vários são os monumentos e instituições importantes que o território da freguesia alberga.
Mais do que isso, nela estão locais de sociabilidades, de lazer e até de tertúlia, como o Chiado, a Brasileira, a Benard... Por ali andaram poetas como Camões, Bocage, Tolentino, Garrett e Pessoa, e prosadores como Eça e Aquilino. Mas, por muito que doa a quem a ama, o que, sobretudo, há na freguesia dos Mártires são testemunhos de tempos idos, memória de outras Lisboas. Ecos do passado.
No presente, o que temos é uma freguesia envelhecida, com poucas centenas de habitantes, e mesmo que o fenómeno da gentrificação ali se faça sentir, como parece que faz, isso não chega para a repovoar. Ora uma freguesia deve ser fruto das condições do presente, e não algo que existe em nome do passado.
Uma freguesia é uma circunscrição administrativa e faz todo o sentido rever o mapa das freguesias em função da actual realidade urbana. O que pode significar a extinção de umas, o reagrupamento de outras, a criação de novas. Tanto mais que uma coisa é a freguesia, outra a memória ou a história de Lisboa.
Essa memória, essa história não se apagam, não desaparecem do nosso património colectivo, porque um governo resolveu rever a forma como divide administrativamente o território da cidade. O eventual desaparecimento da freguesia dos Mártires não faz evaporar-se o Grémio Literário, ou a possibilidade de um cafezinho na Brasileira, junto à estátua do poeta do nosso desassossego, como não vota ao esquecimento o Museu do Chiado, ou o Centro Nacional de Cultura. Nem faz desaparecer a população flutuante, que por ali circula no quotidiano lisboeta. Por isso, a resistência à medida pode ser bonita, poética, mas parece mais filha do coração do que da racionalidade.
Noutro plano, não me consta que haja em Telheiras qualquer grupo de amigos ou associação prepando formas de reivindicar a classificação como freguesia. Mas faria todo o sentido que assim fosse. Aquilo a que se vem chamando "a grande Telheiras" terá hoje mais de 15.000 habitantes e uma forte identidade, emergente na pluralidade das identidades urbanas que fazem a Lisboa de hoje.
Com menos monumentos, menos passado, Telheiras tem muita gente, distribuída por várias classes etárias. Não corre, pois, o risco de desertificação e enfrenta problemas próprios que seriam melhor resolvidos localmente, do que no âmbito de uma freguesia excessivamente grande, como é a do Lumiar. E isso devia ser tido em conta.
Rever o mapeamento administrativo da cidade não terá certamente como objectivo maior a redução de custos, mas o equilíbrio administrativo da cidade. E aí o que conta não é o respeito pelo passado, mas a invenção do futuro.