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É um absoluto exercício de ironia realista a que Rui Reininho se entrega. Não tem medo da popularidade, apenas das insónias. A memória não o trai. Às vezes, magoa-o. Os GNR tiveram direito a uma pergunta. Uma. Mas estão sempre lá. Porque não "sei fazer outra coisa", diz.
[Jornal de Notícias] Tendo em conta a efemeridade intrínseca ao conceito, uma estrela pop celebrar 50 anos é quase um contra-senso...
[Rui Reininho] O problema é saber se o homem é mesmo "pop star". Em termos de figura nacional, sou um bocado incontornável. Era meio hipócrita e de falsa modéstia se não dissesse que o pessoal me reconhece. Agora, popular? É, sou uma figura popular, de facto. Já se fugiu um pouco à ideia "die young, stay pretty", do James Dean, do Hendrix, do rapaz que também fazia anos no meu dia, o Brian Jones. Aliás, era ele, é a Elizabeth Taylor e o Benfica, que faz 100 anos. Eram vidas muito aceleradas e não havia recursos, não havia o INEM...
A incontornabilidade que referiu não o maça nunca?
Não tenho medo do povo nem da popularidade. Escolhi um pouco esta vida, para fugir às outras, digo com franqueza. Aquela vida das 9 às 5... Não fui para advogado, como alguns amigos, o Marco António, por exemplo. Dantes, havia a mania de ir para Coimbra. A certa altura, decidi começar a preguiçar, a não fazer, a actuar pela negativa. Então, pensava que aos 50 anos teria uma vida decente. A prol, os casamentos, aquelas coisas todas. Também fui tendo isso, aos bocadinhos. Depois, tive as outras contrapartidas todas. O prazer do palco...
E tem uma vida decente?
Sim. Minimamente saudável, com os meus desequilíbrios, os meus anseios. Não sou uma pessoa nada satisfeita comigo. Não estou satisfeito com o país, com a paisagem, com esta coisa que me rodeia, mas tenho tenho sido um homem minimamente feliz. Agora, menos egoísta, na medida em que contribuí para fazer outras pessoas felizes. Se calhar, estou na fase da santificação. Estou mais perto da beatificação.
Que pessoas faz felizes, presentemente?
As que me estão mais próximas. Desde que abdiquei daquele exercício narcisista de pensar só em termos de mim. Talvez a partir do momento em que comecei a trabalhar em grupo, nos GNR, em que comecei a funcionar com uma parte de "famiglia", dos "brothers". Aí, encontrei um rumo, que, para já, tem sido o meu rumo, que me equilibrou e que me evitou muitas atitudes suicidárias, individualistas, tontas. O facto de funcionar em grupo, em sociedade alterou-me bastante os comportamentos.
Quais os custos mais penalizantes da exposição pública?
Em termos de privacidade, mentiria se dissesse que me afecta muito, porque não afecta. Mas é mais difícil ser-se sincero. Porque as pessoas olham para mim com uma ideia formada, e eu ou ajudo a mantê-la ou, então, deformo-a. Ultimamente, ouço dizer que "ele não é aquele maluco, sempre acelerado, como se tivesse caído num pote de cocaína". Sou extremamente pontual, rapaz trabalhador e amigo do seu amigo, cheio de virtudes. Nas relações afectivas, sou fiel na medida do possível e do imaginário. Sou um homem que gosta do marzinho, dessas coisas todas. A vida torna-se complicada quando, numa relação mais forte, se falta aos momentos. Aos aniversários, às efemérides, quando se está pouco presente. Como pai, não estou presente as vezes que quero. Tenho o miúdo a 350 quilómetros, o que é muito chato.
Quão estreita é a vossa relação?
A única coisa que lastimo é não estar mais perto. É a minha relação mais sincera, mais próxima. É impagável. Ele é a única criatura no Mundo pela qual sinto que não faço sacrifícios, e, no entanto, faço-os.
Atormenta-o a inevitabilidade de deixar de ser o vocalista dos GNR?
Não é um cargo honorário. É, como diz, inevitável.
Mas pensa muito nisso?
Não, já pensei mais, já me preocupei mais. Cada ano em que se consegue fazer mais uma coisa é um pouco um ano de reconquista, que são os mais difíceis. Nos primeiros concertos, era indestrutível, podia fazer os disparates todos, as directas... Agora, tenho um pouco mais de respeito pela instituição. Mas, não sei... Nem sei se cantar é a coisa que gosto mais de fazer. Mas alivia, faz parte da minha higiene...
Que mais ela inclui?
O facto de ainda me conseguir emocionar com coisas é bom. É o que chamo de minha erecção emocional. Ter desejo. Desejo de lutar por coisas. Por gajas, por exemplo. Gosto. Fico contente.
Tem tido sorte?
Tenho. Sorte e azar. É um jogo como outro qualquer. Tenho tido muito azar também.
O que é que o emociona verdadeiramente?
Coisas tão simples e tão capazes de provocar uma felicidade equivalente, por exemplo, à que sentiram as pessoas que, em 1945, viram o nazi-fascismo cair. Infelizmente, não tive o mesmo prazer com a queda de Santana Lopes. Andou perto, mas não tive grande parzer. Aceitei, como anarquista que sou, mas até já me sinto na obrigação de defender um homem que vejo agora tão maltratado. Sou um bocado quixotesco, não gosto de ver as pessoas irem ao tapete. A derrota é uma coisa que me custa, especialmente, sendo adepto de um clube, o Futebol Clube do Porto, habituado a ganhar. Acho isto emocionante.
A maioria absoluta é o melhor remédio político para o país?
Com certeza que não. É um lenitivo. Creio noutro tipo de utopias. Continuo fiel ao "nem deus, nem pátria, nem chefe". Mas acredito, acredito sempre. Há uns anos, não se acreditava que a escravatura acabaria. Há menos de um século, as mulheres nem sequer votavam. Creio que o homem evolui. Também evoluí. Deixei de gostar de touradas, que era uma coisa que me emocionava de certa maneira. E aprendi. Aprendi, quando comecei a viver com os animais, que não se deve torturar só para proporcionar um espectáculo. Não se deve massacrar o pessoal só para mostrarmos o nosso show.
O que seria se não fosse músico?
Inevitavelmente, faria cinema. É das artes mais completas e a que me preenche mais. As artes plásticas também me fascinam, contudo, sou completamente incapaz de fazer seja o que for nessa área. E gostava de viver à custa de alguém. Do Estado, por exemplo. Sossegadinho.
Como vai o Tai Chi?
Agora, já não vai. Já não tenho mestre, deslocou-se. E aquela coisa sem mestre... Não consigo. Mas pratiquei durante uns quatro ou cinco anos. Gosto de experimentar essas coisas. Fez-me bem numa certa parte da minha vida e, agora, faria melhor, com certeza. Aprender a respirar... Coisas tão simples como essa. Andava a respirar mal, cansado, e preciso de ser um bocadinho orientado, guiado.
De que excessos tem abdicado?
Fazia-me mal ser um fumador activo e passivo, coisas tão estúpidas como o café - que me perturbava e irritava imenso -, as bebidas brancas... Também os chamados vícios fortes. Vivi ao lado de experiências muito fortes, de gente que consumiu heroína e morreu. Felizmente, sempre tive um fígado que não permitiu essas cavalgadas. Tive a sorte de o meu corpo dizer não à droga, porque a minha mente estava disponível para praticamente todas.
O que é, presentemente, excessivo para si?
Não dormir. É perturbante. Em termos de voz, o pior é não ter as oito horinhas sagradas de sono, é terrível. É uma coisa que me angustia bastante. Não dormir é o pior de tudo. Mas, às vezes, tenho medo de adormecer. Porém, tenho a impressão de que, hoje, a coisa mais assustadora seria a insónia. Também não é uma coisa muito grave, não sou assim um caso de sofá psiquiátrico. No passado, perdi um pouco as manhãs e, depois, quando as recuperei, foi um prazer que ganhei. Reconhecer as manhãs...
Que pessoas gostava de recuperar para o seu convívio?
Pessoas de outras cidades, com as quais agora não tenho hipótese nem disponibilidade de viver. De gente de Londres e de Paris, de uma certa boémia. Penso noutras pessoas que perdi, afectivamente. Uma ou duas mulheres extraordinárias, que me deram uma dimensão fantástica da vida e que perdi. Agora, se calhar, pertencem a outros, não é?
Qual foi a perda que o magoou mais?
Foi uma perda afectiva, de facto. Tirando as da família, que são inevitáveis, que são próximas. Mas, afectivamente, perdi duas ou três pessoas que me marcaram bastante, e continuam a afectar. É engraçado. É cíclico...
Traição da memória...
É. A memória tem coisas desagradáveis. Ainda não estou naquela fase de rebobinar para o lado bom. Há tempos, estive a ver uma série de fotos, polaroids que se estão a desvanecer. Polaroids pornográficas, é engraçado. Eram atitudes mais exibicionistas, que tinham a ver com maneiras diferentes de lidar com o corpo. Cenas de quase "strip"...
Os GNR celebram, este ano, um quarto de século. Houve alguma ocasião em que só queria ver os outros pelas costas, em que já estava farto?
Sistematicamente, acho que todos têm essa pulsão. Em especial, quando há aquelas pegas, quando as coisas evoluem de uma maneira que a gente não quer. É uma espécie de democracia pela ditadura de alguém. Mas vamos mantendo-nos juntos, apesar de todos nós já termos tido essa pulsão. Mas, simplesmente, também não sei fazer mais nada.
Que título acha que esta entrevista deveria ter?
Uma citação em latim fica sempre bem. Tipo lápide. "Dura lex, reglex". Mesmo assim. Em vez do clássico...