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Já não é a primeira vez que a Comunicação Social deturpa completamente o sentido das decisões judiciais. De uma dessas vezes, fiquei particularmente revoltado e escrevi uma crónica neste jornal, que significativamente intitulei "Assim não vale!" Tratava-se de um crime de homicídio, em que o marido matava a mulher. Era o célebre caso em que a vítima deixou esturrar a sopa, não sei se se lembram. Atribuiu-se aos juízes do Supremo Tribunal de Justiça o terem baixado a pena com base em circunstâncias atenuantes ridículas, como essa de esturrar a sopa e outras, quando essas circunstâncias, que vinham da matéria provada no tribunal de 1ª instância, foram claramente arredadas pelo Supremo. O que é certo é que, a partir do momento em que essa interpretação foi feita, toda a gente (incluindo pessoas de notória responsabilidade) começaram a discutir o caso com base no facto criado pela Comunicação Social e não com base na decisão, que nunca se deram ao cuidado de ler. Organizaram-se debates na televisão, e foi um grande gozo. A imagem troglodítica de juízes com reumatismo no cérebro dava um grande jeito a esses críticos, sempre à espera de um momento para soltarem a língua, em serões de alegre e leviana especulação. Desta vez, o caso deu-se com a decisão da Relação de Lisboa, a propósito de Paulo Pedroso e outros arguidos no processo da Casa Pia. Treslendo a decisão, muitos e graves jornalistas fizeram dela uma peça de artilharia que puseram nas mãos dos desembargadores, os quais reduziriam a cisco o Ministério Público, acusado de "manipulação grosseira". Dos escombros desse massacre, ressurgia, lustroso, o escândalo de uma investigação dolosamente orientada. O facto, em si, teria a atracção ruidosa das destruições que não deixam pedra sobre pedra, mas deontologicamente é desastroso, não acham?
Artur Costa escreve no JN, semanalmente, às quintas-feiras