As obras de Fernando Pessoa e José Saramago são as mais preparadas para resistir à passagem do tempo, defende o ensaísta e ficcionista Miguel Real no seu novo livro, dedicado aos dois vultos da literatura. "São um espelho crítico do seu tempo", justifica o autor, que exclui a possibilidade de um escritor português contemporâneo beneficiar de uma aclamação internacional idêntica.
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Ao longo de mais de duas centenas e meia de páginas, Miguel Real coloca frente a frente as obras de Pessoa e Saramago. Apesar da natureza muito distinta, o crítico literário acredita que há pontos em comum surpreendentes entre ambos, como a transgressão estética e a inventividade linguística.
Tal como aconteceu com Fernando Pessoa várias décadas após a sua morte, também a avaliação em torno da obra de José Saramago tenderá a ser diferente no futuro, diz Miguel Real, convencido de que as obras clássicas são renovadas geração após geração.
As obras de Pessoa e Saramago são, indiscutivelmente, as mais lidas, divulgadas e traduzidas do século XX português. Com toda a subjetividade que tal opinião encerra, serão também, em seu entender, as mais preparadas para resistir ao impacto do tempo?
Sim, sem anular outros autores, os dois, devido à singularidade da sua obra e ao seu poder disruptivo, resistirão ao tempo. Como Camões, Padre António Vieira e Eça de Queirós. São um espelho crítico do seu tempo
Por falar em subjetividade, vislumbra algum autor português contemporâneo cuja obra possa atingir um patamar de aclamação semelhante ao de Pessoa e Saramago?
Internacional, não, de todo. Nacional, sim: Agustina, Sophia, M. Torga, H. Hélder, A. Lobo Antunes, Ruy Belo. Por mim, juntaria o nome de Manuel Alegre, que reconstruiu a história de Portugal através de uma poesia nova. A História da Literatura ainda não lhe fez justiça. Do mesmo modo, Régio, um gigante que as gerações posteriores, com outra mentalidade e com forte parcialidade, tentam transformar em anão literário. Felizmente que tem um Centro de Estudos em Vila do Conde.
Pessoa e Saramago deixaram uma marca inapagável na história da literatura seguindo caminhos muito distintos, quando não opostos. Os caminhos para a inscrição na História estão longe de ser unívocos ou estreitos?
Muito longe. Entre a publicação e inscrição na História da Literatura levanta-se um autêntico labirinto, de que carecemos ainda de um fio de Ariadne. Veja o exemplo de Florbela Espanca, de indecente, imoral, totalmente marginalizada dos estudos literários até 1974, acabou de entrar no cânone português em 2019 ("O Cânone", de António Feijó. João Figueiredo e Miguel Tamen). Cada geração literária cria aos seus autores de culto e a sua particular história da literatura, revolucionando as anteriores regras de apreciação.
Além de serem produtos do seu tempo, crê que as criações de Pessoa e Saramago também influenciaram esse ao mesmo tempo, e não necessariamente apenas no campo literário?
Sim, Pessoa, devido à sua personalidade reservada, apenas no campo literário. Saramago e a sua sede de justiça universal, da sua luta contra as desigualdades sociais e da sua escrita literária singular ultrapassaram o campo literário e repercutiram-se a nível político e social.
A diversidade e as diferenças entre ambas as obras não excluem pontos de contacto, como defende no livro. Quais consideraria mais relevantes?
Duas características são comuns ambos: 1. - a transgressão estética: Pessoa e a criação da heteronímia, uma síntese da ficção da ficção do século XX; Saramago e a criação de um narrador que é ao mesmo tempo um autor e, por isso, é "tudo de todas as maneiras". No seu tempo, não havia teoria literária que acolhesse a criação singular de cada um: ninguém percebia o que era a heteronímia e ainda hoje, no tempo em que se matara o "autor" (Barthes, Foucault), Saramago não só o ressuscita como lhe atribui um valor superior ao do narrador; 2. - uma representação totalmente original da Língua, do Homem e da Sociedade do seu tempo.
O elevado número de estudos académicos em torno da obra pessoana, sobretudo a partir da década de 1970, deu origem a novas teses e até a releituras da sua obra. Acredita que o mesmo poderá suceder com a obra de José Saramago?
Sim, futuras gerações criarão um Saramago hoje para nós desconhecido. Exemplo - em 2014 e 2019, dois autores (Manuel Frias Marins e Márcio Cappelli) revolucionaram os estudos saramaguianos, evidenciando a "espiritualidade" do materialista Saramago. Foi um novo Saramago que brilhou aos nossos olhos. O "nosso" Saramago ainda é o de Maria Alzira Seixo e de Carlos Reis. Estará porventura a nascer aquele que nos dará o "verdadeiro" Saramago; mais tarde, outro autor detetará na sua obra outros indícios reveladores de um novo "verdadeiro" Saramago - são assim os clássicos, sempre novos em cada nova geração.
Quer a heteronímia quer o autor-narrador foram decisivos para a afirmação das obras de Pessoa e Saramago. Acredita que foram processos maduramente pensados ou, como descreveu Saramago, resultaram quase de uma epifania, devendo mais ao inconsciente do que a uma estratégia delineada com rigor?
Saramago com a epifania da sua escrita no "Levantado do Chão" e Pessoa com o "dia triunfal" da sua vida (8/3/1914) improvisaram o seu estilo, depois limaram-no de aperfeiçoaram-no. Foi espontâneo, embora ambos tivessem um lastro muito grande (Saramago, na década de 70, procurava ansiosamente um novo estilo e Pessoa criava seres ficcionais desde a infância).
É lícito dizermos que Saramago provou através dos seus romances que a realidade pode estar ao serviço da ficção?
Sim, ele acreditava que a Ficção ilumina a História, revela os mundos possíveis por que a história é lida, revelando que a história positiva poderia ter sido feita de outra maneira.
Parece indesmentível que Saramago alargou as possibilidades da ficção. Acredita que os opostos em que os seus romances se movem não só não se anulam como até complementam?
São complementares, são duas visões por que lemos a História e o Mundo. Uns estarão sempre ao lado das elites, desejando a elas pertencer; outros, estarão sempre a lado dos vencidos da história, desejando justiça para eles.
Defende que a mente de Pessoa criava dentro de si própria as múltiplas e diferentes perspetivas pelas quais vê e pensa a realidade. É essa singularidade que explica o facto de ele ser, através dos seus heterónimos, simultaneamente cético e racional, pessimista perante a atualidade mas otimista quanto ao futuro?
Sim, Pessoa era simultaneamente Caeiro ("o mestre"), Reis, Campos, Soares, o Barão de Teive, Mora e Baldaia, a "comunidade só minha". Para além de ser ele próprio. Era a sua verdadeira família interior. Cada um dos heterónimos exprime uma visão do mundo, permitindo a Pessoa ser "tudo de todas as maneiras", como se, por si e por eles, abarcasse a totalidade do mundo.
Apelida de labiríntica a mente de Pessoa. Como sintetizaria a de Saramago? Porquê?
Clara, transparente, dominada pelos objetivos da sua vida - lutar contra a injustiça, as desigualdades e exprimi-lo por via de uma literatura não só original como, sobretudo, singular. Por isso, Saramago se exclui do que há de "mistério" em Pessoa, como o provou escrevendo "O Ano da Morte de Ricardo Reis".
Ao longo de várias entrevistas, José Saramago citou influências como o Padre António Vieira, Camilo ou Garrett, mas curiosamente menos Fernando Pessoa. O universo pessoano não o cativava em particular?
Saramago, como Álvaro Campos, considerava Pessoa (personalidade, obra) um "labirinto": "um novelo com a ponta virada para dentro" (Campos), como o escreveu, em 1985, logo a seguir a "AMRReis", num texto pouco conhecido: "Da impossibilidade deste retrato" (o retrato de Pessoa). Pessoa explora o interior da sua mente; Saramago o exterior da sua mente. Será sempre fiel à epígrafe que escolheu para o seu livro de contos "Objeto Quase": "Se o homem é formado pelas circunstâncias, então é necessário formar as circunstâncias humanamente" (Marx/Engels, "A Sagrada Família")
Os livros de Saramago foram capazes de aliar o reconhecimento crítico e importância para a História da literatura com as vendas extraordinárias (tiragens de 100 mil exemplares). Exemplos similares tendem a ser infelizmente cada vez mais raros?
Sim, em literatura, a qualidade ou vende ou (para autores menos vendidos) é uma plataforma para integrar a história da literatura no prazo de 20 a 50 anos após a morte do autor. Tem sido sempre assim. Eça, comparado com Pinheiro Chagas, muito pouco vendia. Hoje, com a literatura a transformar-se em produto de «marquetingue« e de entretenimento e o novo leitor com a mente conformada pela televisão e pelas redes sociais, qualquer professor ou crítico desconfia da qualidade de um livro que venda 100 mil exemplares.
Na derradeira fase da sua obra vimos um Saramago cada vez mais humanista, defendendo com ardor os direitos dos mais desfavorecidos e não só. Crê que esse apego humanista teve que ver com a desilusão que sofreu pelo desvio das suas crenças ideológicas anteriores (marcadas pelo evolucionismo e marxismo)?
Sim, salientando que o marxismo de Saramago foi sempre heterodoxo. Mas é um facto (provado por inúmeras entrevistas) que a Queda do Muro de Berlim e a implosão da União Soviética o obrigou a descobrir alternativas ideológicas. Descobriu os Direitos Humanos e os Direitos Ambientais como constituintes do seu Humanismo.
Com os conhecimentos psicanalíticos e o estudo das doenças psíquicas que hoje existem, uma obra como de Fernando Pessoa seria, se não impossível, pelo menos mais improvável no nosso tempo?
Sim, muito improvável, mas não impossível, não por causa dos atuais estudos científicos da mente, mas porque o tempo da literatura não é o tempo da ciência, como não é o tempo da economia. É uma "bolha" especial dentro da sociedade frequentada por cerca de três mil leitores. Aqui, tudo é possível, até inventar e descrever um país chamado "Besugolândia". Recordo que, literariamente, Mário Cláudio desdobra hoje a sua obra entre o nome próprio (que já é um pseudónimo) e o heterónimo Tiago Veiga, provocando um verdadeiro "labirinto" hermenêutico nos analistas.