Desde 2009 que a cidade de Lyon acolhe o Festival Lumière, cuja base é o próprio Instituto Lumière, situado lá onde os irmãos Auguste e Louis inventaram o cinematógrafo e realizaram os primeiros filmes. Aliás, a morara da rua lateral, por onde saíram os operários da fábrica Lumière, captadas pela câmara dos dois irmãos, não podia ser mais clara: Rua do Primeiro Filme.
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Com uma programação que privilegia os clássicos, normalmente em sublimes cópias restauradas que chegam de todo o mundo, o festival tem dado também grande atenção a alguns cineastas contemporâneos e a sua grande dinâmica mede-se pelo facto do festival se expandir por inúmeras salas de Lyon, espalhadas por toda a cidade e em sessões normalmente esgotadas, ou não fosse o público francês um dos mais entusiastas pela cultura cinematográfica.
Este ano, Tim Burton é o grande homenageado do festival, havendo ainda que contar com as presenças de nomes como Alejandro Gonzalez Iñarritu ou James Gray, Marlene Jobert ou Monica Bellucci, entre tantos outros. Além do cinema propriamente dito, o festival oferece uma série de outras atividades, como um cada vez mais importante Mercado do Filme Clássico - Portugal foi o país convidado em 2020 -, uma livraria especializada em cinema e uma exposição de fotografias de Marilyn Monroe datadas de 1962, o ano do seu desaparecimento.
Um dos grande momentos da edição deste ano, que em 2021 revelara os seis filmes que a atriz japonesa Kinuyo Tanaka realizara, é sem dúvida a homenagem a Meiko Kaji, atriz de inúmeros filmes populares, sobretudo durante as décadas de 1960 e 1970. Entre eles, o assombroso "Lady Snowblood", um filme de época e uma história de vingança, baseada numa manga, a banda desenhada nipónica, recheada de sangue e que, visto agora, se percebe como influenciou diretamente o Tarantino de "Kill Bill".
Não só Meiko Kaji canta o tema do filme, que Tarantino recupera para o seu filme, como a personagem de O-Ren Ishii, interpretada por Lucy Liu, se inspira na veterana atriz. A cena final do volume 1 do filme de Tarantino e a luta de Uma Thurman contra o loucos 88, são também homenagens a "Lady Snowblood". Sexta-feira, a partir da meia-noite e pela noite dentro, será possível ver os três filmes de Meiko Kaji presentes em Lyon, programa que inclui ainda "A Mulher Escorpião" e "Ela Chamava-se Escorpião", dosi capítulos de uma popular série de filmes de ação interpretados pela atriz. Hoje com 75 anos e afastada do cinema, tem no entanto ativo um canal próprio no Youtube. Para quem sabe falar japonês...
Buster Keaton para começar bem o dia
Para dar ideia do que pode ser um dia de cinema no Festival Lumière registe-se aqui o que foi possível ver esta quarta-feira. Para começar bem o dia, uma sessão às 9h15 no cinema Lumière Hangar, localizado precisamente no local onde existiu há mais de um século a fábrica da família Lumière, com a cópia recentemente restaurada de "The Three Ages", primeira realização de Buster Keaton, em colaboração com Eddie Cline e datada de 1923.
A história de como o amor vence todos os obstáculos, através dos tempos, desde a pré-história até aos nossos dias, passando pelo império romano, o filme é já uma genial demonstração do sentido eminentemente cinematográfico dos gagues criados por este fabuloso comediante, de rosto sempre inexpressivo mas de corpo elástico, sempre pronto a efetuar as cenas mais arriscadas.
Genial é ainda o facto de quem chega mesmo em cima da hora já ter dificuldade em encontrar lugar, numa sala completamente lotada e onde as primeiras filas estão ocupadas por dezenas de crianças de creches e escolas primárias da cidade. Chama-se a isto educação pela imagem, uma aposta no futuro do cinema e dos seus públicos. Um exemplo a reter vivamente.
O dia continua, ainda de manhã, com a descoberta de uma pérola do cinema da antiga Checoslováquia, mas pertencendo hoje à herança cinematográfica eslovaca. "Um Caso Particular", de Martin Holly. Realizado em 1964 e centrando-se no inquérito à violação e morte de uma jovem adolescente, o filme é sobretudo uma denúncia de um sistema político corrupto e onde qualquer pessoa pode facilmente tornar-se suspeita traição.
Ao início da tarde, outra pérola que o Fetsibal Lumière nos traz, "Bratan, o Irmão", de Bakhtyar Khudojnazarov. Realizado em 1990, é hoje considerado como o último filme produzido na então ainda União Soviética. Farukh quer mudar de vida e confiar o seu irmão ao pai. Para o encontrar, atravessa de comboio a paisagem do Tajiquistão, magnificamente filmada neste filme hipnótico e de rara beleza plástica.
Se até aqui as surpresas já eram grandes, o que dizer então da presença de Jerzy Skolimowski, ao fim da tarde, perante nova sala cheia, para apresentar a cópia restaurada do seu clássico "Barreira". O realizador polaco, com 85 anos, e que em Cannes leva a concurso o ssupreendente "Eo", explicou como se tornara realizador com este filme que escrevera para outro cineasta, que abandonara o projeto ao fim de onze dias de rodagem. Hoje um clássico, "Barreira" é uma visão surreal e politicamente subtil da falta de esperanças de uma juventude polaca presa num regime opressivo.
Continuando uma curiosa digressão pelo leste europeu, o dia termina com uma sessão noturna com um dos vários filmes apresentes em Lyon do cineasta húngaro André de Toth. Mais conhecido hoje pelas obras que faria nos Estados Unidos, entre as quais o primeiro filme em 3D, "Máscaras de Cera", De Toth realizou ainda vários filmes em Budapeste, entre os quais "Os Casamentos de Toprin", um filme de época onde se mistura uma história de amor com segredos de estado e se nota já a paixão de Toth por um certo cinema de mistério que caracterizaria a sua carreira em Hollywood: laboratórios secretos, documentos escondidos por detrás de retratos, produtos químicos para revelar o que se encontra por detrás de uma aparente pintura, fazem parte de uma produção sólida, que representa ainda, neste ano particular para a história da Europa que foi 1939, toda a dinâmica da cinematografia húngara.