A coreógrafa Olga Roriz está a recuperar de duas fraturas, tenta poupar-se, diz. Mas, aos 67 anos, apresenta a partir de amanhã e até sábado (19.30 horas), no Rivoli, no Porto, "Deste mundo e do outro", peça que coreografou para a Companhia Nacional de Bailado (CNB) no centenário de José Saramago.
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Depois desta, já estreou outra obra e tem em marcha nova produção para estrear em abril. A verdade e a disciplina internas são condições indispensáveis à sua criação.
Cada vez que coreografa para a CNB, inscreve uma obra no repertório da história da dança contemporânea. Foi assim com "Pedro e Inês" e "As troianas", entre outras. Sente a pressão?
Sinto sempre uma grande pressão por exigência própria, já senti mais pressão exterior. A fasquia de ser a CNB, a partir de uma certa altura deixou de existir; comecei a pensar nela de forma igual à minha companhia. Mas esta não é uma companhia em que possa trabalhar como a minha, com tempo e improvisação. Ali é corpo a corpo, mano a mano e eu já tenho 67 anos. O meu corpo pode criar, mas estar a demonstrar e passar isso aos bailarinos é uma pressão muito grande. Mas tenho de ser leal à minha versão e à dificuldade.
O tempo e a forma desvirtuam os seus processos habituais?
Para colmatar isso, trabalhei com os bailarinos da minha companhia durante duas semanas e com o meu processo e fizemos improvisações. Daí saiu imenso material físico coreográfico; depois fui com esse manancial e com uma mala de vocabulário. Tive muito pouco tempo para trabalhar com a CNB, foi um mês e pouco, mas cheio de feriados pelo meio.
Com esse manancial e com o vocabulário de José Saramago como foi a resposta do elenco?
Quando cheguei à CNB deparei-me com um elenco muito jovem, conhecia 50%, muitos deles são estrangeiros. Eles tiveram muita paciência e atenção a tentarem compreender - mais de 50% nunca tinham lido Saramago, especialmente os estrangeiros. Ao tentar abordar a problemática do ser humano em Saramago senti essa distância.
Deu-lhes leituras obrigatórias para os imbuir da visão que pretendia passar?
Não obriguei ninguém a ler nada. Mas forrei as paredes do estúdio com citações de Saramago e frases de livros, cada um escolheu as frases que lê em cena. Logo no primeiro dia, tinha de sugar esta gente para mim, escrevi sobre mim e sobre a dança. A dança empodera a humanidade. Há oito anos que não fazia nada para a CNB. E houve pelo meio nove peças, falei sobre Aleppo, sobre o futuro do planeta, sobre as minhas preocupações. Na revisitação, descobri algumas peças, como "Síndrome", que se alguém me tivesse dito que era sobre Saramago caía muito bem. O Saramago cai-me que nem uma luva.
Considera, então, que foi uma experiência positiva fazer este trabalho por encomenda?
Só fiz três ou quatro peças por encomenda, não é algo que me agrade particularmente. Mas, José Saramago foi o escritor que mais li dos portugueses, a obra é muito pesada e muito densa. Portanto, tinha isso a meu favor. Voltei a pegar nas "Intermitências da morte" e no "Levantado do chão", e a primeira sensação que tive foi: não é assim tão má ideia. É um privilégio poder partilhar o meu Saramago, sem preocupações de ser ambíguo ou abstrato. Saramago fala sobre nós, as pessoas, e não há melhor para se dançar. A minha primeira ideia foi encontrar um título, como diz Castelucci : "O sucesso da peça é encontrar o título", assim temos a ponta do novelo. Então, peguei nas primeiras coisas que ele fazia como jornalista e encontrei "Deste mundo e do outro". E pensei: se ele era um homem das palavras, quem sou eu para estar a inventar palavras para ele.
Numa obra e vida tão vastas, como se faz a seleção para algo abstrato como a dança?
Há muita gente que faz espetáculos sobre a "Blimunda", ou sobre a vida de Saramago, mas isso para mim é redutor. O Saramago não é só isso, são as mulheres cheias de força e heroínas e os homens que são uns pobres coitados. Mulheres doridas com medo do amor e da morte. Isto causou alguns equívocos, houve quem me perguntasse: "Quem é que vai fazer de Pilar?" [risos]. Foram pontes importantes, livros como "Levantado do chão", a dor e o sofrimento, caminhos tortuosos do ser humano. Refletir sobre a humanidade, amor e preocupação sobre o Mundo, o grande lastro de Saramago, traduzido em 40 e tal países.
Pilar del Río gostou do resultado, mesmo não estando representada?
Tenho muita pena, mas ela nunca pode estar presente. A filha e a neta de Saramago vieram ver o espetáculo e eu não estava à espera, foi muito forte. Uma choradeira pegada, não esperava que viessem do Funchal. E ficámos amigas, foi algo muito bonito.