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Ólafur Arnalds pisa o palco da Sala Suggia sustentado num colorido e confortável par de meias. É um prenúncio para o que segue: ao longo de exatos 116 minutos e 32 segundos, o músico islandês e a trupe de cinco que o acompanha dispararam, ontem à noite, na Casa da Música, doses massivas e caleidoscópicas de música pensada ao detalhe, orquestrada ao pormenor e executada com um esmero difícil de adjetivar. O serão foi um feitiço - um admirável feitiço. A música do multi-instrumentista islandês é, as mais das vezes, circular, mas nunca redonda. A essência eletrónica e atmosférica dos temas rubricados por Ólafur tem, aliás, nas arestas um amigo do peito. São as arestas que, saídas roufenhas dos violinos e do violoncelo, intrusivas da bateria e pungentes dos pianos (no plural, porque são três os que servem as mãos de Ólafur), acrescentam volume e densidade a cada mínimo fragmento instrumental. Quem segue a carreira do islandês de 38 anos topa as bases do que ali está: Ólafur é, musicalmente, "primo" direto do soberbo Nils Frahm, com quem, de resto, já fez coisas bem bonitas (oiça-se "Tranz Fenz", de 2016); é "primo" um bocadinho mais afastado dos Sigur Rós; aprecia a batida sensual de Rhye; explorou a tecno com Kiasmos. Tudo converge para um minimalismo que, disparado, aqui e ali, rumo ao éter com a ajuda da eletrónica e de laivos de pop, envolve paulatina mas profundamente a audiência. O repasso por boa parte da já ampla obra do islandês de 36 anos oferecido a quem assistiu ao concerto de ontem fez prova provada disso mesmo.
Falar para agir Ólafur é um elegante e performativo feiticeiro. As falas com o público fazem parte do espetáculo, porque impelem à ação. Como a que avó do músico, que faria 100 anos ontem, sabiamente lhe exigiu. Incomodada por ver o jovem a soltar energia numa bateria de uma banda de heavy metal ("Ela detestava aquilo", confessou o artista), a avó desenhou uma estratégia de longo-prazo: "Pedia-me para ir lá a casa arranjar o rádio, porque queria ouvir um programa que debitava, durante meia-hora, os nomes das pessoas que tinham morrido recentemente [gargalha dele e do público]. O que ela queria mesmo era que, enquanto comíamos panquecas, ouvíssemos Chopin, horas a fio [segunda gargalhada]."
Funcionou. Foi sobre as obras de Chopin que Ólafur começou a estender os dedos pelo piano. E, mesmo quando estes lhe falharam, por causa de um aborrecido acidente, o compositor não desistiu. Certo dia, num aeroporto asiático, parou junto a um piano que tocava sozinho: estava ali a solução para o mal transitório que o apoquentava. Pediu ajuda a "um amigo que sabe muito destas coisas da inteligência artificial". Hoje, os pianos eletrónicos são parte ativa da performance. Para o fim porventura o melhor: sozinho em palco, sai um maravilhoso solo de piano dedicado à avó. A noite estava mais do que ganha e o público mais do que conquistado. Fazer tudo isto em menos de duas horas é um feito. Um feito bem feito. Amanhã, em Braga, repete-se a dose no Theatro Circo.