Um dos melhores filmes do ano não passou pelo cinema, mas o cinema respirou saúde - até o cinema nacional, coisa a que não estamos habituados. O Mundo mudou, não necessariamente este ano, mas a cada ano sente-se a evolução.
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Como nos festivais em que o pop/rock começa a perder protagonismo, embora ainda sem perder as lendas. Ou na música, em que os homens largam o púlpito para as mulheres e a sonoridade do Mundo soma pontos num palco dominado pelo universo anglo-saxónico. Lugar de continuidade é o da televisão, em que as séries de sucesso se sucedem. No teatro e na dança, mesmo se cada vez mais fundidos, o ano é de nota máxima. Só a literatura parece ter ficado aquém. Seis jornalistas do JN partilham as suas escolhas de 2019.
MÚSICA
Dezoito anos de talento
O que aconteceu em 2019 em colossos de criatividade e influência na música popular? Na Nigéria, destacou-se "African giant", de Burna Boy, exímio no caldeirão afrobeat. Na Colômbia, a crítica celebrou "Esa palenkera", dos Kombilesa Mí, hip-hop interventivo e percussões tradicionais. Na Coreia do Sul, o disco mais bem-sucedido foi o EP "Map of the soul: persona", dos BTS, estrelas da K-pop.
Mas apesar dos avanços culturais em curso, mergulhar no que se passa fora da casa anglo-saxónica ainda implica esforço extra. Regresse-se à base: venceu o rock confessional ou psicadélico "Ghosteen", de Nick Cave, e de "Titanic rising", de Weyes Blood. A vitalidade de uma visão pop transversal e íntima foi encontrada na notável estreia de Billie Eilish em "When we all fall asleep, where do we go?", e no registo espectral de Lana Del Rey em "Norman fucking Rockwell!". Por cá, brilhou hip-hop como o de Slow J ou ProfJam, e o ar encheu-se da panóplia de batidas da diáspora africana. Jorge Manuel Lopes
CONCERTOS
Gigantes do rock conquistam plateias
A abertura do palco nobre do Primavera Sound concedida a nomes como J Balvin ou Rosalía poderá sinalizar o que serão os grandes festivais nos próximos anos. Dos principais artistas do universo pop/rock, apenas Tom Waits continua por aparecer nos palcos de verão - todos os outros foram vistos mais que uma vez. E a marcha das novas gerações encaminha-se para os territórios da música urbana norte-americana. Enquanto o paradigma não se altera completamente, há ainda tempo para concertos memoráveis de nomes históricos, como foi o caso da passagem dos New Order e de Patti Smith pelo último Paredes de Coura, ou para os dias revivalistas em Vilar de Mouros. O futuro poderá também ser encontrado nos sons que melhor refletem o processo de globalização em curso - e para conhecer "world music" nada como o FMM Sines. Registe-se ainda a abertura do Super Bock Arena, no Porto, que inaugurou com históricos Ornatos Violeta. E as duas enchentes do Estádio da Luz, em Lisboa, para ouvir Ed Sheeran. Ricardo Jorge Fonseca
LIVROS
Do triunfo da não-ficção à ficção biográfica
Não é preciso recuarmos muito para nos lembrarmos do protagonismo que a ficção já teve nas listas dos "melhores do ano". 2019 acentuou a queda iniciada em meados da década - pesados e sopesados os títulos marcantes, uma mão cheia sobra para enumerarmos os romances em destaque. Intrincado mas sedutor jogo de espelhos que convoca a figura de José Saramago, "Autobiografia", de José Luís Peixoto, merece uma menção especial. Assim como "Conduz o teu arado sobre os ossos dos teus mortos", de Olga Tokarczuk, ou "Se o disseres na montanha", de James Baldwin. Mais profícua foi a safra nos restantes géneros. A começar pelas biografias, com os competentes livros sobre Sophia de Mello Breyner e Agustina Bessa-Luís, de Isabel Nery e Isabel Rio Novo, respetivamente. O estado (inquietante) do Mundo deu origem à publicação de infindáveis títulos, mas nenhum tão convincente como "A terra inabitável", de David Wallace-Wells. Sérgio Almeida
FILMES
O ano sagrado do cinema nacional
O ano cinematográfico de 2019 foi a vários títulos excecional. Filmes a passar do milhão de espectadores, número total de bilhetes vendidos a atingir os números de antes da troika, e um dos melhores filmes do ano, "O irlandês", de Martin Scorsese, a não passar pelo sítio certo: a sala de cinema. E houve filmes portugueses que foram verdadeiros sucessos de público sem que fosse necessário "baixar o nível", inúmeros prémios conquistados pela produção nacional, com destaque para o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno para "Vitalina Varela", de Pedro Costa, e a animação "Tio Tomás ou a Contabilidade dos Dias", de Regina Pessoa a chegar à shortlist para os Oscars. Se 1,2 milhões de espetadores de "O rei leão" não surpreendem, a novidade é o antifilme de super-heróis "Joker", ter chegado aos 892 mil, depois de conquistar o Leão de Ouro de Veneza. Do nosso lado, "Variações" fez 278 espetadores, "Snu" chegou aos 82 mil e "A herdade" vendeu 74 mil bilhetes. João Antunes
TEATRO
Palco dos novos e antigos diretores
A atribuição do Prémio Pessoa ao diretor do TNDM Tiago Rodrigues é um dos grandes acontecimentos teatrais do ano - apenas uma vez esse reconhecimento fora dirigido a um encenador: Luís Miguel Cintra, em 2005. A estreia de Nuno Cardoso como diretor do TNSJ foi também auspiciosa, com a encenação de um texto que há muito perseguia, "A morte de Danton". A viagem ao Terror da Revolução Francesa resultou num exercício de teatralidade intensa, onde as ideias brotavam à velocidade das guilhotinas. O regresso de Ricardo Pais à encenação, com "Oleanna", de David Mamet, marcou o ano. O criador apresentou dotes de relojoeiro na construção de um espetáculo íntimo que sabotava todas as certezas num caso de assédio sexual. Pelo novo formato do FITEI passaram obras importantes, como a brasileira "Odisseia", da Companhia Hiato, ou "Yo escribo. Vos dibujás", do argentino Federico León. O novo circo deu prova de vitalidade, com o belíssimo "Le vide - essai de cirque", dos franceses Fragan Gehlker e Alexis Auffray. Ricardo Jorge Fonseca
DANÇA
Um ano de pouco virtuosismo técnico
Numa época de hibridação e transdisciplinaridade, valha-nos a Inspeção das Atividades Culturais para rotular o que vemos. Entre a virtuosa dança da velha escola, o teatro físico e essa figura hermafrodita chamada performance, há demasiado terreno pantanoso. "Quimeras", da Karnart, e "Mnémosyne", de Josef Nadj, foram os melhores nessa fronteira, criatividade e imagética em estado bruto. "Drama", de Victor Hugo Pontes, e "Autoacusação", de Joana Providência, são musculadas escolhas no limite do teatro físico. Num capítulo saudosista, Cristiana Morganti, com "Moving with Pina" e William Forsythe, com "A quiet evening of dance", foram marcos importantes. No ano em que grandes nomes do flamenco estiveram em Portugal, sobressaiu Rocío Molina com "Caída del cielo". "Cria", de Alice Ripoll, foi também um dos espetáculos do ano, assim como "to a simple, rock"n"roll song", de Michael Clark. O trabalho do Ginasiano, "Feliz aniversário Mr. Cunningham", de Isabel Ariel, apesar de escolar, é de relevar. Catarina Ferreira
TELEVISÃO
"Fleabag" é nota maior de um ano forte
"Fleabag" e a argumentista e atriz Phoebe Waller-Bridge são as revelações de 2019 e obrigatórias em qualquer lista que refira o melhor da TV em 2019. Original, trágica e cómica em partes exatamente iguais, "Fleabag" é um estudo sobre uma mulher desencaixada à procura de aceitação sem cedências. Está no Amazon Prime. Igualmente fundamental neste (mais um) ano forte de TV é "Watchmen" (HBO), série de super-heróis que está nos antípodas da infantilização Marvel: revisita as feridas do racismo nos EUA e exibe-as bem abertas, em nove episódios com aceitáveis doses de fantasia e insanidade. Além disso: Jeremy Irons! Também na HBO, merecem referência "Succession", que vive da deliciosa sacanice dentro de uma família bilionária, "Euphoria" (a adolescência atual assusta qualquer um) e "Years and years" (o futuro aflige toda a gente). Menção muito importante para aposta da RTP em "Sul". Na Netflix, não esqueçamos "Unbelievable", "Dark" e "Peaky Blinders". Miguel Conde Coutinho
